segunda-feira, 27 de julho de 2009

Nossa ira

Irado!

Uma palavra utilizada pelos mais jovens para designar coisas ou situações que lhe agradam ou, ainda, lhe geram bons sentimentos. Uma forma divertida de assumir uma nova conotação para o significado de um dos mais nefastos comportamentos humanos.

Originalmente a palavra significa enraivecido, colérico. Quem entre nós, não foi ainda tomado pela ira? Quando ela toma conta, se manifesta pela perda de juízo, pela emoção incontida de fazer demover um obstáculo que não conseguimos retirar de nosso caminho de forma sensata e controlada.

A ira tem sua raiz vinculada ao medo e ambos remontam ao surgimento do homem neste Planeta, sendo responsável pelo luto, pelo sangue e pelas lágrimas que permeiam a nossa história até chegarmos a este início de século.

Muitas vezes a ira gera um efeito contrário ao medo, que estanca, mas ambas são parceiras, numa combinação explosiva, da mesma forma como é companheira do ciúme, para revelar o amor primário, e da intolerância, para fugir do dever, tornando-se uma autêntica carga explosiva para transformar uma sensibilidade em um incitamento.

Esse comportamento está associado ao instinto animal de autodefesa e ataque, incorporando-se à condição sapiens do homem e passando a ser deflagrado pela irritabilidade, impulsos e necessidades. Faz parte da sensibilidade que regula sua forma de pensar ou agir frente às experiências que realiza no meio em que vive.

Diante da impossibilidade de utilizar a persuasão para impor-se em seu habitat, o ser humano utilizará sua ira para demover o que lhe atrapalha para alcançar seus propósitos. A irritabilidade pode surgir de repente, sem uma causa aparente, quando os instintos suplantam a racionalidade, assumindo formas agressivas, onde irritabilidade e instintos se convertem numa condição dualista.

Há indivíduos que transformam a sua irritabilidade em agressão, mas, geralmente, é difícil acreditar-se que os mais agressivos sejam tomados pela irritabilidade. A ira e a ambição são filhos de uma mesma origem: o poder. As almas de renúncia, os ascetas, os devotos que resolvem desvincular-se da ambição material são mais imunes à sua manifestação, já que suas virtudes incluem atitudes que a impedem de se instalar de forma incontrolável.

Há que se lembrar o caso de Gandhi que, quando jovem, era tido como uma pessoa colérica e explosiva e que conseguiu dominar-se para chegar a enfrentar e a vencer o império britânico, isso sem perder a sua bondade. Jesus Cristo, São Francisco, São Tomas de Aquino, Madre Teresa são exemplos de seres humanos que conseguiram transcender a essa condição humana.

É justamente o afã de dar curso a sua ambição que torna o homem suscetível à ira e de sua propensão de alimentar temores e medos de não ser bem sucedido em suas intenções. E, em escala coletiva, de construir sistemas belicistas que hoje já permitem requintes de destruição da própria terra simplesmente pelo apertar de botões. Hoje, um simples lap top consegue um poderio de fogo jamais imaginado por aqueles que estiveram participando das últimas duas grandes guerras. A guerra deixou de ser física para se tornar cibernética, sendo ela eclodida pela manifestação do medo convertido em ira.



O medo do fracasso é mola mestre para deflagrar-se a ira, assim como sentimentos de limitação ou de enfraquecimento frente a nossos propósitos. A explosão acontece acompanhada de gritos, movimentos ou gestos. É uma torrente de energia vital que se desprende como forma de insurgir-se, principalmente quando se manifesta através de ataques a outras pessoas, às quais considera igual ou inferior, podendo, fisiologicamente, apresentar-se como cólera ou refrear-se, como temor.

Nesse caso, em lugar da explosão ocorre o rancor silencioso, guardado tanto em relação a seus oponentes quanto a si mesmo, pela impotência de dar curso a seus arroubos desconcertantes. O ato de conter-se é uma forma de repressão cujas principais manifestações escamoteiam as reais causas e intenções guardadas. É um momento em que todas as forças de quem a alimenta se convergem para remover os objetos ou pessoas que se interpõem a seu caminho ou permitam encontrar formas de compensar as frustrações de quem as reprime.

Já a fúria é sua face explosiva onde seu autor perde a noção de medida, investindo destrutivamente contra suas causas ou procurando meios para desfazer, em si, a contraparte geradora de conflitos. Age contra si e contra os outros, às vezes simultaneamente, levados pelo discurso de “estar fazendo justiça”.

É incomum uma pessoa externar ou reconhecer o seu medo. Por isso, nem sempre suas atitudes colérico-destruidoras são facilmente reveladas ou associadas às conseqüências. O agressor sempre manifesta estar agindo para “reparar” uma injustiça. Outras vezes, adentra pelos caminhos do julgamento, da crítica e da parcialidade sempre demonstrando estar imbuído de um senso de justiça.

Seja lá como for não devemos confundir levantar a bandeira da justiça quando estamos, na verdade, nos distanciando de uma correta compreensão dos fatos e uma empatia que nos aproxima dos demais seres humanos e, sim, praticando atos com base em nossa antipatia ou buscando compensar nossa auto-piedade por nos sentirmos verdadeiramente fracassados. Em nome da justiça muitos foram condenados à morte durante a inquisição que marcou a idade média ou foram executados a mando de um cabo austríaco que espalhou seus horrores, durante a segunda grande guerra, em nome da purificação das raças.

Muitas vezes, transformamos nossa ira em ironia, ou em uma de suas manifestações, o sarcasmo, para expressar uma agressão estratégica, de forma a humilhar outros seres ou a compensar, através de um ar superior, nossas fraquezas internas.

Nem sempre um sorriso no rosto esboça receptividade e altruísmo, mas ressentimentos, inveja, desequilíbrio interior, ainda que esteja acompanhada de humor, graça e popularidade. Nunca deixa de ser uma forma de alguém utilizar a ironia como forma de compensar as frustrações, fracassos internos ou conflitos afetivos.

A ira constitui, assim, um gerador de comportamentos que nos desviam de nossos propósitos maiores. Através do livre arbítrio, podemos decidir se ela se converta em destruição ou em situações produtivas. Refletir sobre sua existência, em nossa personalidade, constitui o primeiro passo para decidirmos se devemos destruir, destruir-nos ou transformá-la em amor e auxílio ao próximo. Reconhecer a sua existência constitui uma boa razão para debelar fantasias, penetrar na realidade e encontrar a verdadeira humanidade que há em nós, que permeia os verdadeiros princípios universais contidos em nossa verdadeira condição humana*.

* Texto inspirado no livro “Os quatro gigantes da alma”, Mira Y Lopes – Coleção Sagarana – Editora Jose Olímpio.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Nossos medos

No afã de guardar a essência da vida em versos, o poeta Vinicios de Moraes assim predicou:

“De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se afaste mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure”.


Alcançar o infinito e torná-lo durável, suplantar a angustia, a solidão, espalhar o canto, rir o riso, viver a plenitude do amor constituem conseqüências de um tempo e de um espaço vivido. É o eterno desejo de fazer passar pela peneira somente os bons momentos e deixar retido em suas malhas todas as formas de sofrimento que corroem nossa existência e nos tiram o brilho do olhar frente aos desafios oferecidos pela vida.

Para alcançarmos o estado de felicidade plena temos, muitas vezes, que cruzar o rio das adversidades, banharmo-nos nas águas do infortúnio e atravessarmos as correntezas da tristeza para atingirmos, de forma segura, as margens que nos levam ao remanso de estar em paz com a vida.

Por vezes nos perguntamos por que tanta dor e tanto sofrimento, tanto medo de experimentar, se, ao final, nosso destino maior é a morte? Talvez por isso mesmo passamos pela vida tentando extinguir a sede por alcançar a eternidade, que nos arrogará sempre esse gosto da vida que passa e tortura, marcado pela busca de solução ao problema de duração da própria alma.

Cada vez mais quero ser eu mesmo, encontrar minha identidade, deixar de querer ser o outro, para adentrar, a partir de mim mesmo, à totalidade das coisas, a partir da sensibilidade que é conduzida pelos próprios sentimentos.

Vivemos a constante busca pela transmutação, saindo de um estado de anulação de nós mesmos para atingirmos a consciência da auto-existência. Uma busca marcada, muitas vezes, pela solidão, quando bate a impressão do desamparo e a ânsia para se chegar ao amparo, principalmente quando descobrimos que nossos temores são fruto de nossa fértil imaginação.

Quando a sucessão de medos nos leva ao maior deles: o medo da própria vida, das incertezas que o futuro reserva e da busca por desvendar o desconhecido, nos agarrando a toda a sorte de adivinhações para antecipar o futuro e, assim, orientar decisões e evitar o surgimento de surpresas desagradáveis.

O desconhecido suscita em nós o medo e esse nos deixa entorpecidos, tirando de nós a própria espontaneidade. Ou gera em nós a busca por uma “vida ordeira” e conservadora que é reiteradamente imitada para evitar abalos em nossa caminhada. Ou, ainda, nos faz regredir em nossas emoções para evitarmos o enfrentamento dos obstáculos que surgem ao longo da existência.

Ah esse medo da própria vida! Negamos a sua existência porque esquecemos que a única propriedade que possuímos com exclusividade e absoluto domínio é ela, a própria vida. É tão fácil resolver essa equação, deixando, tão somente, a eternidade adentrar por nosso interior. Mas o medo, em lugar disso, abre as portas para as forças obscuras, vindas da profundidade do inconsciente, para nos torturar e nos levar a cometer excessos que sempre terminam em arrependimentos.

O medo instintivo-orgânico nos causa inibições, o medo racional é pensado antes de senti-lo e se manifesta através de uma voz que diz: “não te arrisques”. O medo imaginário nos leva ao desequilíbrio, aos atos passionais.

O medo é astuto, gosta de se camuflar em forma de modéstia, prudência ou preocupações, timidez e outras máscaras que surgem ante o fracasso ou ao ridículo, da auto-insuficiência ou ambição ou, ainda, de oportunidades de ser julgado pelos outros.

O tímido espera pela ajuda de fora e se ressente se a ajuda não vem a ele conforme previsto por ele. Já o pessimista busca a alegria, mas não tem coragem para conquistá-la. O cético se sente desenganado por tudo. O tédio revela o médio de ficar a sós. A vaidade esconde a insegurança e o desconsolo. A hipocrisia não revela a ambição desmedida. A mentira encobre o medo de domínio de si mesmo.

Sim, o medo não é saudável. Exige coragem para debelá-lo, pela análise de causas ou fatores materiais que ocasionam processos inibitórios das atividades vitais. Enfrentar o medo exige o conhecimento de seu modus operandi, principalmente quando se trata de um estado permanente de insegurança, pessimismo, ansiedade ou quaisquer outras formas de desequilíbrio interior.

Alcançar o infinito e torná-lo durável é suplantar nossos temores através da harmonização dos contrários. É aceitar fracassos e estabelecer progressivos triunfos. É estabelecer um ponto de encontro entre a medrosa inibição e a corajosa ação para se chegar à serenidade, onde o ser humano aprende a viver o seu próprio destino e construir uma personalidade superior onde ele é o artífice, criando, recriando e transcendendo os seus próprios limites. *


*Texto inspirado no livro “Os quatro gigantes da alma”, Mira Y Lopes – Coleção Sagarana – Editora Jose Olímpio.

sábado, 11 de julho de 2009

Problemas e dificuldades

Há uma frase, proferida durante o velório de Michael Jackson, que me chamou a atenção. Ela foi pronunciada pelo Pastor Lucious W. Smith, da Igreja Batista de Pasadena:“Obrigado, Michael, porque você nunca parou, porque nunca desistiu, porque acabou com nossas divisões. Eu gostaria de dizer algo para os três filhos: não há nada de estranho com seu pai. Estranho foi o que ele teve de enfrentar”.

O Pastor Lucious, com a sensibilidade aguçada de quem persegue o amor altruísta como ideal de vida, reconhecia uma condição humana presente na vida de todos nós: são nossas atitudes que fazem toda a diferença em relação a problemas e dificuldades.

Nem sempre a vida se apresenta de forma límpida, mas dura, cheia de contradições em si, impregnada de convenções, preconceitos e erros, sentimentos constrangedores que não poupam ninguém e provocam angústia, tristeza e solidão. E tal qual a história de um copo que contenha líquido pela metade e será visto como quase cheio, por uns, ou por quase vazio, por outros, assim também podemos encarar fases adversas como o infinito findar de um ciclo, que é marcado pela angústia de viver ou como o início de outro.

Quem, nesta vida, não os encontrou ou não os enfrentou? Acredito que haja uma tênue, porém substancial diferença entre ambos. Considero problema como uma hesitação frente a um obstáculo e dificuldade como um impedimento diante de um obstáculo.

Nada é tão desafiante à nossa verdadeira condição interior do que ser suscitado pelos problemas e pelas dificuldades que vêm do ambiente e das circunstâncias que vivemos. Lidar com eles faz parte de nossa formação humana, pois eles penetram em nós através de nossa parte obscura, aquela que traduz tais obstáculos em sentimentos de incertezas, dúvidas e impotências.

Eles penetram em um lugar onde o tempo não serve de medida e onde há o medo de que estraguem ou desequilibrem o interior, por chegar de forma desprevenida e pela falsa convicção de que as virtudes disponíveis são incapazes para enfrentá-los, dentro de uma condição não inteiramente amadurecida e pura.

Trata-se de experiências dos sentidos, onde a dor exerce um poder superior à vontade e à resistência, atritando e colocando em cheque nossa fecundidade. Mas a cada obstáculo, a ser vencido, nos encaminha à construção de um novo ser humano, em profundidade e magnitude, dentro de uma crescente maturidade carnal e espiritual.

São experiências que nos fazem refutar falsos sentimentos, construídos durante a existência de empecilhos, por outros que conduzem à harmonia e à fecundidade de se sentir pleno diante da vida, onde a confiança em si se faz mais e mais presente. Como uma escada onde subimos degrau a degrau, aprendendo a identificar e a preservar as poucas coisas que prevalecem até o eterno, enquanto problemas e dificuldades ameaçam nos consumir.

Antes de superar a cada problema ou dificuldade, vem o sentimento de solidão e de isolamento, tão grande e difícil de carregar. Tal situação exige penetrar-se em si, na grande solidão interior, principalmente quando descobrimos que aquilo que nos enseja ocupação não está diretamente ligado à nossa à vida. Talvez, nesses momentos, a melhor atitude não seja colocar-se na defensiva e no desprezo por si, mas simplesmente aceitar a não-compreensão que impede sair de labirintos e seguir rumo à luz como uma forma de viver as próprias perguntas.

É difícil viver a solidão. Mas, se encarada, mesmo com medo e palpitação, pode ser uma ótima oportunidade para se aprender a transformá-la em algo em si mesmo, aceitando-se o que se apresenta estéril, empobrecido.

Não é possível viver sem perigos e inseguranças, mas é possível crer-se que o caminhar e o passar do tempo tragam o auxílio e a aprendizagem de como nos defrontamos com o adverso. Se formos perseverantes, conseguiremos aproximar as referências de vida dos problemas emergentes, vencendo suas incertezas. Nossas tristezas serão dirimidas, sendo as experiências repassadas ao recôndito de nosso ser, tornando mais finito a nossa dimensão interior infinita.

Perseverar frente aos problemas é criar meios para vivermos melhor com o inexplicável, que se apresenta quando menos estamos preparados. Nossas covardias, ao contrário, nos levam a capitular frente aos mistérios que nos atrofiam, principalmente frente ao maior dos mistérios inescrutável: o da própria morte.

É preciso vencer o medo do novo, quando não nos sentimos suficientemente fortalecidos. É preciso aceitar que a vida é um eterno devenir e que, por mais enigmática que se apresente, contempla incertezas tanto quanto as certezas, ainda que a tratemos como verdadeiros abismos a serem transcendidos.

Viva cada etapa dessa descoberta, não se censure, não seja impulsivo. Não pense no erro, no tropeço, na falha, mas naquilo que pode suceder ao que se revela como um problema ou dificuldade. O curso natural do que nos acontece vai, progressivamente, nos conduzindo à melhor compreensão do que está subjacente à experiência.

Procure retirar de dentro, do mais absoluto inconsciente, a luz que se busca, o ato de recriar ou compreender cada experiência. Pois, aos poucos, a sucessão de problemas e dificuldades nos prepara para chegarmos a conhecer a grandeza da existência e da eternidade, quando certezas e incertezas se tornam os lados do ato de ser humano.

domingo, 5 de julho de 2009

A arte de escrever

Dentre os livros que passaram à frente de minha retina, destaca-se “O Encontro Marcado” de Fernando Sabino. Em suas letras o autor dizia: “Escrever é exercitar a arte do monólogo”. Nada mais verdadeiro. Toda vez que me disponho a sentar e a escrever algo, para postar neste Blog, me deparo com inúmeras perguntas que me vêem à mente: “Quem é o leitor que me lê? Quais são seus gostos e preferências? Sobre o que gostaria que eu escrevesse? Estou acrescentando algo novo em suas vidas? Consegue ele penetrar em minha alma através de um processo de empatia, que se estabelece entre essas letras eletrônicas, suas paixões e expectativas de vida?

Como não tenho as respostas, devo contentar-me com as perguntas. E também continuar exercitando os meus monólogos. Mesmo que sejam através de mão única. Escrever está associado a todas as formas de leitura.

Certa vez confessei a um gerente de um cinema, que exibia filmes de arte, que, dentre as experiências que gostaria de realizar, uma delas seria montar uma livraria. Nesse diálogo ele foi logo afirmando: “Livro é uma coisa pouco difundida no Brasil. A maioria dos proprietários de Livrarias que conheci faliram. Só vencem aqueles que possuem estabelecimentos em rede, se preocupam em lançar à venda aquelas obras que estão na moda e são ofertados por profissionais que conhecem pouco de seu ofício, mas que possuem um salário desse tamanho, pequeno e compatível com a função de empurrar Best Sellers. Não se meta nessa, não, camarada. Você vai quebrar a cara. No cinema é a mesma coisa: filme que leva a pensar não dá bilheteria. Somente filme de porrada”.

E a platéia?, pergunta ele? Dia desses eu vi um menino chegar às 2 da tarde, aqui, sentar num dos sofás do saguão, e ficar parado, sem fazer absolutamente nada, só olhando quem chegava prá comprar ingresso, até as 22 horas. O cara sentou, colocou os pés no assento, mesmo sujando o tecido de revestimento, e ali ficou, parado, sem pensar, sem se movimentar. Somente fazendo nada”.

Tanto ele como eu somos pessoas, no mínimo, excêntricas, por querermos trabalhar com algo pouco cobiçado no Brasil. Vende-se, no Brasil, somente aquilo que é produto da mídia, do prazer vendido, da excitação em moda, do que é recomendado pelas famosidades.

Sempre fui uma pessoa que se perguntou: o que faz os gostos e preferências de quem freqüenta uma livraria? Dentre os títulos, em exposição, o que leva um leitor escolher “aquele” título e não outro? Será que ele fica folheando brochuras prá ver o quanto deve se dedicar a devorar, naquele “monte de páginas”? E será que ele se contenta em ler livros massudos, sem fotos, sem pausas para descansar? Ou será que ele agora está atraído pela ambiência dos novos estabelecimentos, que são mistos de exposição de livros, cafés, pontos de encontros, música ao vivo, vendas de quinquilharias, seja lá mais o que, como estratégia de marketing para atrair potenciais clientes?

Alguém há de dizer: deixa isso prá lá, pois as pessoas passam mais tempo a frente do computador, já que agora têm twitter, Orkut, MSN, blogs, sites de relacionamento, amigos virtuais, etc., tudo isso para tornar o livro obsoleto. E, se assim é, então porque nunca se produziu tanto papel, em plena era da informática?

Por isso volto a meu monólogo, para me perguntar: será que perdemos o interesse em aprofundar assuntos, em nossa relação com os outros, para apenas apreciar informações instantâneas que trocamos superficialmente com os outros internautas, para validar um ego que a todo o momento precisa ser alimentado e engordado para declarar a sua onipotência? Ou será que a livraria deixou de ser aquele ponto de encontro entre escritor e leitor, por termos a facilidade de “fazermos downloads”, pela internet, dos conteúdos sintetizados que aplacam nossa imediata e pragmática sede por conhecimento?

As livrarias são hoje empreendimentos que perdem de longe para lan houses, lojas de discos, lojas de informática ou de telefonia, etc. Talvez pelo eventual equívoco de que o ato de ler não signifique empurrar informações para dentro, mas fazer despertar o que existe dentro de nós, renovado e colocado para fora como meio de manter a dignidade e a conseqüência de procurar responder as grandes questões existenciais que perseguimos enquanto estamos aqui.

Pois, ler, escrever e pensar são considerados atos verdadeiramente subversivos, em regimes de exceção, e libertários em regime democráticos, quando conduzem à liberdade do livre pensar. Escrever e ler são formas que transcendem o ego e vão ao encontro de nossa condição maior de ser humano, na esperança de que monólogos sejam transformados em verdadeiros diálogos fecundos para revelar nossa disposição em sermos guiados por ideais transcendentes.

Pelo menos esse é o propósito de manter esse Blog, estimulando o debate, a tempestade de idéias. E, por trás da letra digital, reconhecer a letra impressa, como ferramenta de reflexão, ainda que esteja tão fora de moda, mas tão eficaz para evitar o que previu George Orwell em sua obra “ 1984”, pelo surgimento do Big Brother, não o de Pedro Bial, mas o de uma máquina estatal totalitária, que venha abolir a todo ato propugnado pelo filósofo: “se penso, logo existo”. Enquanto eu ler e também escrever estarei vivo e livre para validar a vida interior, que pulsa e me faz sentir pleno, dentro de um universo em constante transformação.

De tudo um pouco!

Não foi ao acaso que o filme “O estranho caso de Benjamin Button” ganhou três oscars. É um filme que comove por mostrar o que acontece a um ser humano que nasce idoso e morre bebe. Na história de Benjamin Button, ele recebeu a mesma carga vital, destinada a qualquer ser humano, porém percorre-a em sentido contrário.

Nascido aos 90 anos vai, aos poucos, rejuvenescendo, fisicamente, enquanto sua mente vai adquirindo maturidade. Quando chega à idade de 10 anos, sua mente apresenta um comportamento decrépito, semelhante a todos os que ultrapassam a barreira dos 80 anos.

O filme tenta mostrar que um dos principais elos, que une a vida de um bebe a um idoso é exatamente a fralda. A ficção inspira-se na realidade. Para muitos a vida está envolta em um manto, que esconde a visão dualística de que a juventude é prazerosa e a velhice fonte de provas, sofrimentos e dor. É um passo que antecede a morte, redentora de toda forma adversa, trazida pela idade avançada.

Seria bom se pudéssemos nascer enfrentando, de cara, todos os problemas trazidos pela velhice e depois, aos poucos, vindo a encontrar o prazer de viver e de explorar a juventude em toda a sua plenitude. O filme contradiz essa aspiração, pois mostra que a vida é um eterno devenir: nada é verdadeiramente definitivo em nossa existência, nem mesmo a faculdade de chegarmos a escolher em que momento, de nossas existências, experimentaremos sofrimento e dor.

Cada etapa da existência está ligada a uma carga de experiências. Por isso o personagem descobre o seu maior sofrimento ao descobrir que sua vida caminha exatamente na contramão de sua maturidade emocional e cognitiva. E que a vida é em relação. De que o alcance da felicidade e da plenitude somente acontece quando em contato com outros seres humanos incluídos em sua trajetória existencial.

O personagem sofre porque, enquanto as pessoas se encaminham para a velhice, ele estaria fadado a rejuvenescer mais e mais. É quando toma a decisão de abandonar o convívio de sua filha, porque com o passar dos anos não iria conseguir ser um pai para ela, mas um menino totalmente incapaz de exercer a sua paternidade.

Esse é um ato de renúncia suprema, por amor, resolve se afastar do convívio da filha, para que essa se desenvolva segundo os padrões adotados pelas demais pessoas que farão parte de sua vida. E também desobrigar o amor de sua vida, a sua companheira de experiências, de ser compulsoriamente submetida as contingências de sua própria condição de vida.

A mensagem final do filme é que, mesmo sendo pessoas tão diferentes, carregamos em nossa essência necessidades tão iguais, como encontrarmos os próprios caminhos, vivermos a dimensão do amor, em toda a sua plenitude, adquirirmos consciência expansiva, a cada etapa de nossa vida, não deixarmos de experimentar os desafios que vida nos reserva e, sobretudo, descobrirmos que prazer e sofrimento são ingredientes presentes no dia a dia, independente da direção biológica e das atitudes que irão temperar o que acontece, enquanto não usamos a fralda, tanto na chegada como na partida de nossa condição de ser humano, artífice que cria, recria e transforma o pensar e o sentir num eterno devenir.