sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Amargo Pesadelo

Há filmes que marcam a nossa vida. Um dos que permanecem ainda vivos, em minha memória, é, sem dúvidas, o filme Amargo Pesadelo, que assisti aos 23 anos de idade (1972). Desde o primeiro momento estabeleci uma empatia instantânea com a fotografia, o enredo e o desempenho dos atores, mas, principalmente, com a proposta de roteiro, por representar a eloqüência do comportamento humano. Dentre o elenco, as impagáveis atuações de Burt Reinolds e John Voigth.

O filme conta a trajetória de quatro amigos que resolvem sair em férias, longe do ambiente urbano, para desfrutar um convívio com a natureza. Tudo segundo um planejamento prévio, onde a principal aventura seria seguir até as cabeceiras de um caudaloso rio e descer suas correntezas, até o remanso, quilômetros rio abaixo. Tudo isso montados apenas num barco inflável e contando com a coragem e o desafio de fazer a determinação vencer a força das águas.

Mas aquilo que parecia, de início, apenas uma forma de executar o que fora programado, veio a se tornar um enorme pesadelo, quando a canoagem virou a defesa da própria vida. No grupo havia um líder (Burt Reinolds), determinado e seguro frente ao que estabelecera como desafios programados.

Mas a sorte troca de lado quando os aventureiros encontram dois homens predadores, que caçavam animais em vias de extinção, para ganhar um bom dinheiro no mercado ilegal de peles. O confronto se estabelece e um dos nossos aventureiros é estrupado e humilhado. Em represália, o líder dos aventureiros (Burt Reinolds), acaba matando um dos caçadores, mas, antes, é ferido na perna.

Verifica-se assim que, diante do perigo, o líder perde a sua empáfia, enquanto o mais tímido (John Voight) é compelido a assumir a liderança e vai, aos poucos, ganhando auto-suficiência e desenvoltura, para a chegar a assumir as características de um verdadeiro líder, mais afeito ao imprevisto e dentro de um clima de hostilidade cujo perigo de vida era iminente.

Também devo fazer uma especial menção à cena de um “duelo”, que acontece entre um garoto autista e seu banjo e um dos personagens aventureiros e seu violão. Esta semana recebi um e-mail, enviado por uma diletíssima amiga, contendo o segmento do filme em que ambos tocam os seus instrumentos. Segundo esse mesmo texto, a cena surgiu de um imprevisto, onde a equipe parou num posto de gasolina e encontrou o menino. O Diretor Boorman acabou por inserir tal “duelo”no roteiro, mas os expectadores é que foram realmente contemplados com uma das mais inesquecíveis realizações humanas, onde um dos protagonistas, considerado “normal”, consegue se relacionar com um menino autista através da música.

Agradeço à minha amiga Ana por este envio, assim como a Deus por poder relembrar deste filme que marcou o final do último século. Inspirado na vida real, a arte é capaz de mostrar que as lideranças são relativas, dependem das circunstâncias e muitas vezes escondem os verdadeiros heróis, fazendo uma verdadeira apologia à tendência humana de construir seus mitos.

Quantas vezes, na vida nacional, a realidade copia a ficção? Os líderes autênticos só surgem na adversidade. Quem sabe se, sob determinadas condições hostis, muitos dos atuais governantes, que tecem a sua imagem pública, com o intuito de se tornarem mitos, possam derrubar suas máscaras e evidenciar os verdadeiros heróis anônimos, aqueles que possuem uma alma altruísta e estão despidos de quaisquer relações de poder, mas que trabalham pelo bem-comum e carregam consigo a verdadeira condição de liderança. São, esses últimos, capazes de nos tirar do perigo que viceja o cenário nacional, tanto pela insegurança das ruas quanto pelos efeitos danosos das especulações e das negociatas que estão encobertas pela visão mítica, mas que não resistem sequer à primeira adversidade e onde as coisas começam a sair de controle. Daí para frente os atores mudam e só os verdadeiros líderes são capazes de levar ao remanso e à calmaria o bote das circunstâncias que assolam a vida nacional. Quanto ao final do filme? Bem eu acho que ainda existem, nas locadoras, cópias suficientes para você rever Amargo Pesadelo, e descobrir por si mesmo o final desta película, inspirada pela música e pela interpretação de um altista que se universaliza através da sua música e nos deixa a certeza que há, entre os céus e a terra, mais mistérios do que nossa vã filosofia consegue explicar.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

IMAGEM

Todos nós temos uma imagem a preservar.

Não basta abrir os olhos para a vida, olhar sujeitos ou objetos, através de nosso olhar peculiar, aprender a enxergar o que está subjacente ao que nossa retina consegue captar, identificar o que é essencial para a existência, expandir a consciência para levá-la a compreender as grandes verdades universais.

É preciso alimentar a voraz fome de construção de nossa imagem pessoal, para que os outros nos vejam através dela, como filtros que recomponham a luz e permitam uma imagem instantânea adequada, captadas por lentes de uma máquina fotográfica.

Esse aparente desprezo pelo simples, pelo tangível, não nos serve, pois nossa visão imediatista acredita que a melhor forma de alcançarmos a eternidade seja através de uma imagem construída, um rótulo que retire nossas imperfeições e enalteça nossas virtudes, a serem mantidas como ícones de verdadeiros super-homens que passam à eternidade como verdadeiros mitos.

Somos ególatras que não encaram o próprio ego como uma ferramenta, mas como um fim em si mesmo, verdadeiros buracos negros que vão, aos poucos, sorvendo pedaços de humanidade que habitam em nós.

Esse ego que criamos para nossa libertação, mas que, aos poucos, se converte em verdadeira figura opressora que nos escraviza:

“O que os outros vão pensar”? “Falem bem ou mal, mas falem de mim”!”Eles me adoram!” Eles não podem viver sem “mim”. “Sou mais eu”!

Necessidade imanente, busca constante, alcance efêmero, vamos utilizando-a como escudo e também como trampolim para reafirmar a nossa presença neste Planeta.

Seguir nossas próprias pegadas, superar limites, enfrentar desafios, sem deixar que nossa imagem sirva de referência. E, quando ela é posta em cheque, pelas adversidades, nos dispomos a reconstruí-la, tal qual um barco que precisa de uma bússola para singrar os mares em busca de aventuras.

Nosso ego trabalha a imagem como condição essencial para vivermos emoções e deixar nossas pegadas por onde passamos, até que os ventos do destino às apaguem, e até que uma nova cruzada seja empreendida, sempre pela teimosia de imprimir, de forma duradoura, as marcas por onde passamos.

O que nunca sabemos é se ela, a imagem, conseguirá construir vida própria, e sobreviver à nossa morte, para alcançar a eternidade, já que morrer faz parte da inexorabilidade da vida.

Difícil mesmo é renunciar. Senão de forma espontânea, de forma compulsória.


A renúncia caminha em sentido contrário à imagem e, por isso mesmo, é relegada como filha indesejável que nasce de um simples ato de prazer. Ao contrário, prevalece nossa eterna busca pela alquimia de fazer transformar imagem em mito.

“O Mito é o nada que é tudo”, como dizia o poeta Fernando Pessoa, Renunciar x Preservar a Imagem é o grande dilema deste século.

E assim seguimos pela vida, procurando a nossa identidade a partir dos ícones que herdamos de nossos antepassados, cujo nome é um selo de nossa individualidade.

Sobre isso escreveu o saudoso poeta Mario Quintana:

“Um ser humano só é ele mesmo enquanto os pais ainda estão discutindo um nome para batizar. Até então é anônimo, como um animalzinho sem dono, simples filho da Natureza e de mais ninguém. Sem laços de parentesco e outras contingências sociais. E, depois, estará correndo o riso de lhe darem um desses horrorosos nomes tradicionais de família”.

Lúdica paixão pela imagem, tão passageira, tão impessoal quanto o passar das horas.

Mas como escolher um outro caminho, sem imagem, porém com conteúdo? Basta encontrar o caminho do verbo e não do sujeito, cuja ação nos transporta pela estrada que nos dá a plenitude da criança, antes que o nome nos encontre, antes que a imagem seduza, como verdadeiro ópio que vai nos afastando do que é essencial para nossa eternidade.