domingo, 1 de setembro de 2013

À Procura por Deus

Durante a última semana, enquanto assistia um telejornal de uma emissora capixaba, surgiu uma reportagem que buscava entrevistar o pai de um adolescente brutalmente assassinado nas ruas da Grande Vitória, quando chegava à sua casa. Mesmo com muita dor e após ter testemunhado a execução sumária de seu estimado filho, o pai limitou-se a dizer que o momento atual de violência, vivido pela sociedade brasileira, se deve à falta de Deus no coração dos homens. 

Essa constatação deixou-me reflexivo, pois todos nós sabemos que o mundo seria muito melhor se as pessoas colocassem Deus no coração, pois haveria maior fraternidade, solidariedade e cumplicidade entre os homens. Mas tenho a impressão que os homens têm buscado por Deus em todos os lugares, menos onde O encontramos: no fundo do coração.  
 
Queremos que Ele nos dê tudo e pouco lhe oferecemos em troca.

A vida agitada, o culto ao corpo, ao consumismo, ao prazer visceral, sem contar com o filtro que igrejas e seitas colocam pelo caminho, através de seus dogmas e doutrinas, constituem, em meio a tantos outros percalços, desvios para esta busca. É mais fácil admiti-Lo assistindo o rito, oferecido por um caminho religioso, tornando essa busca mais pragmática, porém recebendo a falsa convicção de que sozinho não é possível chegar a Deus, senão através de um agente intermediário. Ao contrário, a busca por Deus é um esforço estritamente individual através da interiorização da consciência.

Mas como encontrá-Lo? 

Sempre que estou diante dessa reflexão, lembro-me do cantor e compositor Gilberto Gil e de sua extrema sensibilidade e aguçada visão humana. Gilberto Passos Gil Moreira dispensa maiores apresentações. Os brasileiros o conhecem. Há pouco tempo tive a honra de folhear a excelente edição do livro "Todas as Letras", organização de Carlos Rennó, textos de Arnaldo Antunes e José Miguel Wisnik, edição gráfica de João Baptista da Costa Aguiar e iniciativa da Companhia das Letras. Publicado em 1996 pela Editora Schwarcz Limitada., a publicação contempla letras comentadas pelo compositor, produzidas durante a década de 1980.

É claro que Gil transborda sensibilidade e sua insatisfação diante dos porquês da vida. Sobre o principal instrumento desta busca, a meditação, ele fala o que pensa através da letra "Meditação", composta em 1975, que diz à certa altura:

" Dentro de si mesmo 
Mesmo que lá fora
Fora de si mesmo
Mesmo que distante
E assim por diante
De si mesmo, ad infinitum
Tudo de si mesmo
Mesmo que para nada
Nada para si mesmo
Mesmo por tudo
Sempre acaba sendo 
O que era de se esperar".

Reportando-se sobre a letra, afirma Gil: "Uma canção sobre meditação, que é uma canção, que é uma meditação (uma canção-meditação), fruto de um processo de meditação e realizada em estado de meditação. Dentro de mim mesmo. Meditação é uma busca de extratos rarefeitos do pensar e do sentir, do olhar entre o sujeito e o objeto, sobre o si e o em si, e sobre o ser. A letra resultou de horas e horas, dias e dias de meditação sobre a música".

E foi inspirado nessa preocupação de unir experiência e busca por resultados que ele compôs a belíssima letra de "Se eu quiser falar com Deus". Ela vem recheada de experiências de sua alma, dentro de um contexto universal, de quem busca, encontra e transcende toda a dimensão pessoal, conforme a letra enseja, em composição datada de 1980:

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os noz
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus


Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar o cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos  do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração.


Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas para me segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as  costas, caminhar
Decidido,  pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar
 
Quem ouvir esta música, prestando atenção em sua letra, não precisa mais procurar pistas de como empreender a viagem para dentro de si em busca de Deus. O autor deixa entrever que, para escrever esta belíssima canção, primeiro fez a sua busca, adquiriu suas experiências, chegando a olhar e encontrar dentro de si o Sujeito desta busca.
 
Mais do que tudo relata uma experiência pessoal que canta e encanta, arrebata e inspira, por seu verdadeiro conteúdo universal ou universalista.
 
Para buscar Deus a alma deve calar, renunciando todas as experiências de vida, as ideias pré-concebidas, o delineamento de onde quer chegar. A alma deve despir-se de tudo, inclusive de seu próprio ego, o mais teimoso em deixar a cortina baixar para que a verdadeira realidade se apresente.
 
Lao Tsé, em seu Tao Te King, há cerca de 2.600 anos, já disse que não é o finito que vai ao infinito, mas o infinito que vem ao finito. Isso significa que a alma tem que dar o primeiro passo: fazer silêncio para auscultar a voz do Infinito, a alma do Universo, fora de nossa linguagem e também abstraindo de todas as correntes mentais a que estamos envolvidos, principalmente nos dias atuais.
 
Levados pela fé, todos nós podemos viajar pelas profundezas de nosso ser, até encontrarmos o vazio-Deus e daí a descoberta de um plano diferente de tudo o que se possa imaginar, mas que se imagina existir, a possibilidade de transmutação, com o desaparecimento das manifestações físicas, da entidade psíquica que chamamos alma, do inconsciente eu - para outra coisa, outra forma de consciência. 
 
Por isso me lembro bem, como se fosse hoje, das sábias palavras do padre Inácio Larrañaga, ditas quando eu ainda era jovem, de que "só há uma maneira de encontrar Deus: de joelhos". Se cada um conhecesse e vivesse a realidade tão bem explicadas nos livros máximos da humanidade, a vida terrestre do homem, em lugar de ser um inferno de discórdias, seria, como disse Humberto Rohden, um paraíso de harmonia e felicidade.
 
Creio que esse pai, a que vi naquele telejornal, hoje enlutado, que deu seu brado em meio à dor de ver o seu filho brutalmente assassinado, já iniciou esta jornada, mesmo com todo o pesar de sua alma. Em um mundo conturbado, onde a sociedade harmônica está na UTI, precisamos largar um pouco nossas amarras com tudo o que nos solicita para nos voltarmos para o silêncio.
Se quisermos mudar o mundo, façamos como Gil ou este pai enlutado, colocando em prática nossas experiências de busca, oferecendo uma contribuição para a  própria experiência da humanidade. Não esperemos pelos demais. Iniciemos o nosso trabalho. Com isso, estaremos, por certo, revelando novas formas de existência, que dão um novo contorno à vida neste plano, ora tão conturbada, dolorida e muitas vezes encoberta por nuvens da desesperança. Com isso, vamos seguir rumo ao que diz o Poeta Gil, em sua letra, mesmo alcançando algo diferente ao que anteriormente chegamos a preconizar: 
 
 
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas para me segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as  costas, caminhar
Decidido,  pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar.