terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Realidade ou ficção?

AMOR SEM ESCALAS é a denominação que recebeu, no Brasil, o filme “Up in the Air”, inspirado no livro de Walter Kirn, rodado no último ano, sob a direção de Jason Reitman, responsável pelos sucessos Obrigado por Fumar e Juno.

Recebeu seis indicações ao Oscar deste ano: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (George Clooney), Melhor Atriz Codjuvante ( Anna Kendrick e Vera Farmiga), Melhor Roteiro Adaptado, sendo vencedor do Globo de Ouro 2010 de Melhor Roteiro para Jason Reitman e Sheldon Turner.

Traz no elenco Jason Bateman, George Clooney, Anna Kendrick, Vera Farmiga, Melanie Lynskey, Danny McBride, Chris Lowell, Tamala Jones.

Resolvi assisti-lo em pleno carnaval, por não me considerar um compromissado folião. Antes de sair de casa, dei uma olhada na sinopse: “Especialista em redução de pessoal vê seu emprego ameaçado justamente quando conhece a mulher de seus sonhos e está perto de atingir dez milhões de milhas”.

Aprendi há muito que não devemos escolher um filme pela sinopse, nem pelo nome que recebeu no País de exibição. De fato acredito que o título original faz jus à indicação, já que convida o espectador a fazer uma reflexão sobre temas atuais que pertencem às nossas vidas.

Dentro de uma óptica subjetiva, entendo que a proposta do filme tenha sido examinar a rotina das pessoas, suas decisões, que determinam seus rumos de vida, além de discutir atitudes e expectativas frente ao futuro que é reservado às pessoas.

A estória gira em torno de Ryan Bingham (George Clooney), um consultor que tem a tarefa de demitir funcionários para cortar os gastos das empresas.
Presumo que o ato de despedir um funcionário, que conta com longos anos de casa, constitui um gesto de tamanha envergadura, pelo impacto e efeitos, que as empresas americanas resolvem terceirizar essa tarefa, colocando nas mãos de um especialista a missão de verdadeiramente balançar a vida das pessoas.

Por isso, Ryan viaja o tempo todo, cerca de 11 meses e meio ao ano, sempre vestido de terno e carregando uma maleta, em seus constantes deslocamentos pelos diversos cantos do país. E, quando não está no trabalho, gosta de passar o tempo em quartos de hotéis pouco conhecidos e cabines de vôos, estando próximo de atingir a sua maior meta: conseguir dez milhões de milhas como passageiro.

O ato de demitir vira uma rotina, a ponto de torná-lo um profissional frio e distante de seus desafetos. Surpresas, chocadas, revoltadas, confusas elas reagem de formas distintas, mas todas elas tendo como elemento essencial o fato de ver sua estabilidade financeira desmoronar e passarem à contingência de não mais contarem com proventos fixos para honrarem compromissos assumidos face à segurança de um vínculo empregatício que julgavam imorredouro.

E agora, o que eu vou fazer de minha vida? Como vou sustentar meus filhos? Como vou honrar os compromissos assumidos? Dei o meu sangue por essa Empresa e agora ela me despede? Fiz muitas horas extras, nada recebi, e agora, como pagamento, eles me colocam no olho da rua!
Esses e outros comentários são reproduzidos exaustivamente durante o filme. A incredulidade e o estarrecimento estão presentes na expressão corporal de todos os entrevistados.

A maior ironia, no tocante à responsabilidade atribuída ao Especialista, é a de fazê-lo buscar, junto a seus desafetos, que se encontram num momento de sua maior fragilidade, estimular-lhes a ter confiança em si para buscar novas oportunidades, talvez mais afetas às suas reais aspirações e espertizes. É uma forma de fazer reduzir o impacto de uma dispensa que somente beneficia a parte contratante.

Seu trabalho consiste em anunciar a decisão, esperar pela reação e, depois, abrir-lhes os olhos para novas oportunidades de mercado, buscar a minimização de seus pontos fracos, que lhes conduziram à dispensa, e otimizar pontos fortes, levando-lhes a trocar a tristeza provocada pelo descarte por uma atitude construtiva de sair em busca da realização de sonhos alimentados e ainda não considerados ou de fazer do demitido tirar da gaveta planos profissionais nunca lançados em prática.

Isso ele consegue algumas vezes, ao analisar seus currículos, como é caso, ao descobrir que um deles adota o hobby culinário, nas horas vagas, incentivando-o a montar um restaurante, ou, então, sugerir a um funcionário da área administrativa que montasse seu próprio negócio, com a experiência acumulada.

Tudo ia bem, até que seu chefe contrata a arrogante Natalie Keener (Anna Kendrick), que desenvolveu um sistema de videoconferência onde as pessoas poderão ser demitidas sem que seja necessário deixar o escritório. Este sistema, caso seja implementado, põe em risco o emprego de Ryan. Ele passa então a tentar convencê-la do erro que é sua implementação, passando a viajar com Anna para mostrar-lhe a realidade de seu trabalho.
Com isso, o filme também discute a relação tecnologia x relações humanas, onde modelos de funcionalidade e sistemas digitais tendem a ocupar o lugar do velho e simples contato presencial, olho a olho.

É nesse momento que o sistema se mostra verdadeiramente draconiano. Em sua condição de aprendiz, a recém promovida especialista demite uma funcionária de uma empresa e essa lhe diz que iria se jogar de uma ponte, por não ver solução à situação criada, possibilidade relevada pelos especialistas. Mas tempos depois acabam sabendo que a funcionária demitida cumprira com o que havia anunciado, pondo fim à sua vida.
Esse fato provoca um verdadeiro abalo entre todos os envolvidos.

Constrangida e traumatizada, a nova especialista se demite. E com a ajuda de seu ex-colega consegue um novo emprego.

O filme também coloca em discussão a questão da felicidade e seus vínculos com a solidão, vivida por seu personagem central, que era destituído de vínculos emocionais, mantendo apenas o rumo conforme itinerários traçados por seus dirigentes.

É nesse momento que surge uma mulher em sua vida, vivida por Vera Farmiga (não muito conhecida do público brasileiro), mas que também conserva o estilo de viajar sempre.

Eles se encontram quando suas agendas de viagem batem. Oposto a eles está Natalie, uma recém formada cheia de vida que acha que pode conquistar o mundo. Quem nunca pensou assim?

Ryan descobre que sua amada Alex é casada, chegando a fazer a sua opção por viagens para quebrar a rotina de seu lar. Ela lhe imputa o papel de “endosso de cheque” quando deseja apimentar sua vida sexual. Ryan é o verdadeiro objeto de suas fantasias libertárias. Já Natalie, ao esconder suas incertezas e inseguranças atrás de uma capa de arrogância e petulância, recebe a dispensa do namorado através de uma lacônica mensagem em seu celular.

Nem drama, nem comédia (sua classificação oficial), o filme discute o papel da família e possibilidade de as pessoas viverem uma vida livre. Vale a pena constituir família, entregar-se à rotina e permitir que as intenções originais sejam solapadas, ao longo do tempo, pela mesmice? Será que a rotina e o imobilismo de uma relação vai desfigurar o encanto e o fetiche que chegou, algum dia, a unir pessoas enamoradas? O personagem observa que, por mais que sejam felizes em seus relacionamentos, as pessoas sempre acabam morrendo sozinhas. Sem atrativos para aceitar família e convívio familiar, Ryan opta por uma vida sem vínculos, preferindo a solidão e a estabilidade de viver uma condição sem altos e baixos, proporcionados por compromissos mais duradouros.

Ora, há uma tênue linha que separa ficção da realidade. Ambos os lados são concebidos por mentes que projetam ideações e visões subjetivas no contexto onde vivem. As pessoas compartimentam suas vidas para que elas se tornem mais fáceis: o seu trabalho, o seu lazer, a sua vida familiar, a sua vida social, etc. E se esquecem que são elas mesmas o tempo todo. São elas que estão vivendo suas experiências. Há uma aparente dicotomia em suas existências: estabelecem rotinas para se sentirem seguras, refutam todas as suas conseqüências, mas não estão devidamente preparadas para sair delas. Como se suas vidas fossem uma linha reta que segue rumo ao horizonte sempre imutável e sob controle para evitar desestabilizações.

Ao serem dispensadas de seus vínculos empregatícios, tanto na ficção quanto na realidade, todas são tomadas de surpresa, sentindo-se chocadas e estarrecidas. A possibilidade de uma demissão nunca passou de uma quimera em suas vidas.

Somente quem já passou por isso sabe o que significa verdadeiramente sentir o chão desabar. Eu já passei, recentemente, por tal experiência, verdadeiramente singular. Porque, quem é demitido, na atual sociedade, é considerado um verdadeiro perdedor, sendo estigmatizado como objeto do preconceito e da exclusão.

E assim como acontece em nossas vidas profissionais, também podemos ser demitidos por outras pessoas de nossa condição afetiva, que resolvem nos excluir de suas vidas.

A discussão levantada nos leva a um alerta de que a rotina e a estabilidade podem ser quebradas a qualquer momento. E quando uma nova realidade se instaura, ela quebra com todo o status quo existente anteriormente. Nossa vida nunca mais será a mesma. Posso arrumar um novo emprego, uma nova relação, uma nova pessoa para fazer parte da minha vida, mas seja como for a minha vida nunca mais será a mesma.

Muitas vezes não aceitamos isso, muito embora o ato de aceitar possa fazer parte da construção de novos paradigmas em nossa vida. Quando há uma ruptura, somente temos olhos para ver que somos seres infelizes, porque perdemos o que nos prendia a uma forma de vida, e passamos a ser carregados pelo peso de nossa autopiedade e de nossa “falta de sorte”.

A grande maioria das pessoas, que são demitidas de seus relacionamentos, não consegue se reinventar, não consegue, de imediato, construir novos valores para encarar a vida. E vivem o desconforto da solidão. O papel de um especialista é o de apontar novas oportunidades, mas estamos tão envolvidos com o pesar da exclusão que nos esquecemos de ver e apontar novas e oportunas possibilidades em nossa vida.

A vida nos convida, se não de forma espontânea, de forma compulsória, a reinventarmos a concepção que temos dela. Estamos aqui para aprender e a tirar lições de nossos erros. Pois sempre haverá um Ryan em nossas existências, viajando para cá e para lá, fixando metas, insensível às nossas emoções, proclamando mudanças, lembrando que a vida não é linear, nem estável, mas um eterno devenir. E esse personagem pode até esconder uma outra designação, ignorada por muitas, chamada destino, que engloba tudo, até mesmo a morte, sempre presente, mas nunca considerada em nossa incessante busca pela estabilidade.

E quando Ryan vier bater em nossa porta, não poderemos dizer mais: eu não estava prevenido, eu não sabia, o que vou agora fazer de minha vida? Porque ele atingiu a sua meta de acumular 10 milhões de milhas. Feitas através dos mais desavisados, que insistem em deixar de acreditar que a conquista da felicidade depende das cores que pintamos a nossa vida.