domingo, 1 de abril de 2012

Regime de Exceção? Nunca mais!


Primeiro vieram os tanques. Muitos. As lagartas escorregavam no piso liso dos paralelepípedos, assobiando, gritando, enquanto os motores potentes gemiam para subir aquela ladeira íngreme. Um a um foram passando, enquanto os moradores se escondiam em suas casas, vendo, inesperadamente, quebradas as suas rotinas por aquela cena de guerra, que invadia a monotonia de suas vidas.


Depois vieram os soldados, marchando, com suas botas lustrosas, seguindo em passos largos pela ladeira acima. Em ritmo acelerado e fazendo a rua assumir tons de verde oliva, empunhavam fuzis com baionetas fincadas.  Seus superiores, acompanhando a marcha acelerada, ordenavam em voz alta aos moradores e transeuntes:


- Vão para suas casas. Ninguém sai. Recolham-se!


A ordem era dada com aquele tom militar de obediência a ser seguida, sem direito a muitas explicações. E, em poucos instantes, brotando, ninguém sabe de onde, os militares tinham ocupado a rua General João Telles, bairro Independência, em Porto Alegre.


Atônitos, custávamos acreditar no que nossos olhos evidenciavam: o exército estava nas ruas. Meu avô nem sequer tirara o seu pijama, pois preferira, antes, levantar, preparar um mate e, quando surpreendido, foi olhar pela fresta da janela para entender a razão daquele barulho ensurdecedor.


Tudo isso eu presenciava pouco antes de completar meus quinze anos. Ainda era imaturo para relacionar aquela invasão aos últimos acontecimentos, ligados à rádio Legalidade, arauto de um movimento de esquerda, que, nos últimos dias, anunciava a chegada de novos tempos ao povo brasileiro. Era revolução de cá e de lá.


Iniciava ali, diante de meus olhos, a Revolução de 1964.


Depois daquele desfile militar, nada festivo em minha rua, tudo voltou ao silêncio e ao que parecia normalidade. Por isso o povo foi, aos poucos, saindo de suas casas, já na manhã seguinte. Naquele tempo ainda não havia supermercados. Só vendinhas, onde nossa família mantinha cadernetas para registrar o fiado tomado, programado para ser saldado ao final do mês. Foi uma correria só. Nós e os vizinhos invadimos aqueles estabelecimentos para comprar e estocar gêneros, pois pensávamos  na iminência de ficarmos sitiados, por vários dias, correndo o risco de falta de alimentos, bebidas e outros artigos de primeira necessidade.


Cada um carregava o que podia em seus braços, enquanto as portas desses estabelecimentos permaneciam semicerradas à espera de uma ordem para fechar. Ao cair da noite, velas foram acesas, em casas e ruas, enquanto poucas pessoas passavam apressadamente pelas calçadas da rua onde morava. Havia um toque de recolher. De fato, durante dois ou três dias as vendinhas ficaram fechadas e depois reabertas normalmente. 


Procurávamos ignorar a presença militar em nossas vidas, fingindo retomar nossas rotinas. Mas os efeitos da revolução logo chegaram até nós. Lembro-me que, em uma manhã ensolarada, dirigia-me à escola Rui Barbosa, localizada ao longo da Avenida Oswaldo Aranha, em área limítrofe à cidade universitária da UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  


Frequentava o curso científico, em instalações que hoje não existem mais, demolidas para dar lugar à construção de um viaduto para ligar aquele bairro ao Centro da Capital. Tudo isso ainda está presente em minha memória. Quando cheguei às cercanias daquela Escola, notei um grande número de estudantes universitários que se aglomeravam pelas áreas adjacentes à Escola de Arquitetura, esparramando-se pelas avenidas e parques fronteiriços ao complexo universitário.


Estavam agitados, gritando palavras de ordem, agitando bandeiras, bloqueando o fluxo de veículos, incitando os transeuntes a se unirem ao movimento. Um pelotão de soldados começou a marchar em sentido contrário, estacionando há poucos metros de distância do grupo que protestava. Vi aquela cena congelada por mais de hora. Os militares parados só observando. Os manifestantes ruidosamente desafiando seus opositores a voltarem para onde vieram, conclamando-os a os deixarem em paz.


Fui me aproximando, aos poucos, do portão principal, permanecendo fora dos muros escolares, para ver no que ia dar toda aquela agitação. O comandante do pelotão pegara o megafone e gritara:


- Voltem para suas casas, queremos ordem. Dispersem-se e acabem com este movimento. Mas os insurgidos ficaram determinados em seus postos.


Depois de algum tempo um batalhão da cavalaria e outro de choque chegaram ao local. Mas tudo permanecia na mesma. Então o comandante bradou: “Se em dez minutos, vocês não se dissolverem, vamos agir, prendendo os desordeiros, para restaurar a ordem.


Passados cinco minutos, voltou a fixar um prazo remanescente.  


Mas os estudantes não se intimidaram e continuaram a gritar palavras de ordem. Alguns se deitaram a frente dos cavalos, sabendo que os animais não pisoteiam seres humanos estendidos no chão. Resistiam bravamente à presença militar, unindo-se em prol de um objetivo comum, embora pudessem estar separados por ideologias e crenças de como poderiam enfrentar seus oponentes. Creio que, naquelas fileiras, muitos deles poderiam estar pensando em erguer bandeiras cujos efeitos também poderiam derivar-se em novas formas de regime de exceção. Mas, certamente, naquela hora, todos eles queriam os militares de volta aos quartéis. 


Esgotado o prazo, o comandante deu a ordem, enquanto os militares partiam para cima dos manifestantes.  Enquanto eu adentrava pelos muros de minha escola, para encontrar abrigo, fui acompanhado por inúmeros estudantes universitários que, em desabalada correria, conseguiram encontrar abrigo seguro. E, de lá, enxerguei muitos feridos, que sangravam e gemiam suplicando por socorro.  Muitos foram presos, deles não tendo mais notícias.


Daí para frente, toda e qualquer iniciativa, naquelas imediações, que assumia contornos do que acontecera aquele dia passou a ser reprimida com veemência . Não era necessária a aglutinação de grandes multidões. Bastava um pequeno grupo se reunir que o remédio era dado na mesma medida. Até que ninguém mais pode formar aglomeração de mais de três indivíduos, sob pena de serem detidos. 


E assim a Revolução seguiu o seu curso. Entre os desaparecidos estavam colegas de classe que nunca mais vi retornaram aos bancos escolares, ignorando o paradeiro que tomaram, após aqueles incidentes que sacudiram a vida nacional.


Hoje tudo isso permanece apenas na memória dos mais velhos, que deveriam ensinar aos mais novos o valor da liberdade, da responsabilidade e da paz, como verdadeiros alicerces para o desenvolvimento humano. Regime de exceção é regime de exceção, seja de que bandeira for.


Pode haver um traço de totalitarismo no interior de cada um de nós. Em todas as nossas instituições ainda há ranços de autocracia. Em nossas escolas, nos sindicatos, nas associações, e, principalmente, nas empresas, cujas estruturas rígidas e verticalizadas favorecem o poder cerceador e excludente, que tornam o exercício de democracia uma mera questão de retórica. Até mesmo nas estruturas familiares esse verticalismo ainda está presente. Nos dizemos sociedades modernas, avançadas, tecnificadas. Mas, sobre isso, temos muito a aprender com nossos irmãos índios que sabem preservar a sua individualidade porém, de livre e espontânea escolha subordinam-se à vontade coletiva paritária. 




Deixemos esse traço autocrático dormindo em nós. Muitas imputam às ideologias e à luta de classes como fatores da discórdia. Pessoalmente acredito que a disposição ao totalitarismo é inerente ao próprio homem e está inserido em sua condição humana. Está ligado à intransigência, o controle absoluto, a incapacidade de conviver com as diferenças, a busca por hegemonia, a regulação, a ausência de limites no uso da autoridade. Que a volta de regimes autoritários não passe deste primeiro de abril. E fiquem na memória de tantos que a viveram. 


A história humana permeia a intolerância, em relação aos adeptos do pacifismo e da democracia verdadeiramente participativa. Martin Luther King, Gandhi, John Lennon e tantos outros tiveram suas vozes caladas por sectários, por simplesmente preconizarem um mundo melhor, uma visão humanista e ambientalista capaz de levar a humanidade a transcender a um novo patamar.  Que as memórias vivencias permitam que passemos às novas gerações a esperança de um novo amanhã e a construção de seres mais preparados a viver a tolerância, a diversidade e a comunhão de homens dispostos a transformar utopias em verdadeiras condições de ser e de viver.

Nenhum comentário:

Postar um comentário