quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O GRITO DO IPIRANGA

Da janela de um quarto de hospital, localizado às margens do Arroio do Ipiranga, vi Porto Alegre à minha frente, em quase toda a sua totalidade. Aço, concreto e vida. Vida que acontece através de milhares de transeuntes, que circulam por ruas e avenidas, fazendo acontecer a metrópole.

Vida através do verde das árvores, que torna a Capital uma das mais proeminentes do País, por abrigar uma das maiores concentrações verdes urbanas por metro quadrado do território nacional. Vida através de suas águas, cujo estuário maior cobre a extensa conurbação, que se estende através da depressão central de los pampas. Vida dual, que se desenrola dentro de hospitais, onde parte do universo se alimenta de energias renovadoras e parte, invisível aos olhos, é hospedeira que vampirisa forças vitais.

Essa mesma dualidade também vejo compondo a paisagem à minha frente: o Arroio do Ipiranga, que agora agoniza, fruto da inconsciência humana. Outrora ostentava um caudaloso curso d’água, desde os meus tempos de menino, agora não mais do que uma fina lâmina, de cor escura e odor fétido, que circunda bancos de areia, trazidos em dias de fortes chuvas. Quase anônimo, invisível aos olhos que passam, ele, mesmo moribundo, continua a cumprir o seu papel de fazer esvaziar boeiros repletos de esgotos e decarregar para longe dos olhos o lixo acumulado ao longo de suas margens.

Tal como doente, em hospital, o Arroio agoniza, podendo ser, a qualquer momento, acometido por uma trombose terminal. Enquanto isso não acontece, ainda há seres que lhe fazem vida: as tartarugas, que acreditam em seu poder regenerador. Nós, seres humanos, dotados de “inteligência”, o deixamos bem assim, moribundo, para que não morra de vez, nos esquecendo que a própria inércia, frente a um arroio, também representa nossa impassividade diante da vida.

O Arroio é parte de nós, parte de nossa história, parte de uma paisagem de um porto verdadeiramente tri-legal. Se ele morrer, levará a essência vital de nós mesmos. Afinal, a palavra Ipiranga representa o grito, a liberdade, a dignidade e independência e arroio o símbolo de vida que corre, com sangue nas veias, que transporta nutrientes e retira impurezas danosas à existência. Não brademos, pela segunda vez, esse grito, pois o brado, agora, será contra nós, simbolizando, tanto para suas águas, como para nossa vida, a mesma inexorável realidade: independência ou morte.

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