sexta-feira, 19 de junho de 2009

Da realidade e da ficção em nossas vidas

Pesquisas apontam um número médio de quatro horas diárias como o tempo que uma pessoa, no Brasil, gasta à frente da telinha. Durante essa jornada considerável, entre as 24 horas disponíveis, alimenta emoções, sentindo-se parte de uma aldeia global de quase sete bilhões de pessoas. É um preço caro, se considerarmos que, ao olhar para telinha, deixa de olhar para aqueles que estão mais próximos. Por isso os diálogos desaparecem da vida familiar, uma vez que se dá mais atenção ao casal que nos visita, através da telinha, Willian Bonner e Fátima Bernardes, do que a um familiar, também interessado no que esses âncoras estarão informando.



Em minha casa, a telinha fica num dos dois lugares mais estratégicos da edificação: a cozinha, uma vez que os telejornais acontecem exatamente na hora das refeições: entre 7 h e 8h, a partir das 12h30m, às 19 h e às 20h. A alimentação é sempre feita, assim, ingerindo-se denúncias, tragédias, medidas de impacto governamental, desastres ambientais, crimes, protestos, alta de preços e tudo mais, que é mórbido e que esteja no cardápio de nossos editores para nos mostrar, para nos chamar à atenção e gerar ibope, uma vez que notícia boa é rara e não atrai a atenção do espectador.


Findo um telejornal, chega o momento de deixarmos a telinha um pouco mais ligada, mais presente, mais ruidosa, em nossa vida, talvez à espera de novas “noticias”, que, agora, deixam, de ser produzidas por jornalistas formados graças à decisão do STF.


Esse é o momento em que a telenovela invade nossos lares. Por seu efeito lúdico, a telenovela nos tira de nossas apreensões diárias e nos conduz ao universo de personagens envolvidos com problemáticas semelhantes aos nossos, porém dissociados de nossas emoções existenciais. É um alívio saber que aquilo não esteja se passando conosco, porém com Maya, Raj, Bahuan, Opash e outros. E também com a Santinha, a Beata, o Zeca (Filho do Demo) e demais integrantes do enredo.


Para atrair nossa atenção, os autores utilizam um sentido dialético: incorporam, em suas tramas, situações da vida real, mas, ao mesmo tempo, criando, através da ficção, elementos alternativos, para dissociá-la de nossa realidade vivencial. Isso é: é parte de nós, mas também não nos pertence.


Com efeito, a vida é dualista em sua manifestação. Sempre digo que o mal está contido no bem e que o bem está contido no mal. Para isso sempre dou um exemplo: num dia de calor, experimente tomar um chopp bem gelado, com colarinho, sentado à mesa de um bar que contenha música ao vivo. A bebida desce redonda e nos estimula a querermos mais. Isso é bom. Mas imagine que a noite seja criança e que ela venha amadurecer após tomados 20 chopps. No outro dia você jura nunca mais tomar aquela bebida dos demônios, que lhe fez sentir um gosto de guarda-chuva na boca. Isso é ruim. Então eu digo que toda a experiência depende de sua medida. Assim como não existe comida ruim, porém mal feita, assim também nossa vida depende do tempero que colocamos em nossas experiências.


São desses temperos que as novelas são feitas, pois elas contêm um pouco de nós e nós carregamos um pouco do que elas acrescentam. Dia desses fiquei observando a novela Paraíso e fiquei me perguntando o que ela poderia dizer sobre nossas vidas. Entre os personagens, inspirados em nós, espectadores, se destacam três: uma personagem que busca, a vida inteira, ser beata. Seu maior sonho era tornar-se freira. Mas, embora eu não conheça direito o enredo, sei que ela acabou se casando e gerando uma filha. Frustrada na concretização de seus sonhos, ela passou a depositar na filha a forma de ver materializada o seu ideário de vida. E, para tanto, chamou sua dileta filha de “Santinha”, para personificar suas intenções.


Isso é: fez da vida da filha a própria a continuação de sua trajetória. Porém, a mocinha alimentava seus próprios sonhos, apaixonando-se por Zeca, considerado, naquelas paragens, o verdadeiro filho do Demo. Nesse momento da trama a mocinha está reclusa no convento, vivendo seu momento de expiação, dividida entre seu amor carnal e sua vocação transcendente.


É comum, na vida real, pais desejarem que seus filhos venham a concretizar seus sonhos, nunca realizados. Esquecem-se que cada alma traz consigo o seu próprio caminho, a ser trilhado, e que, muitas vezes, o destino lhe reserva caminhos muitíssimos diferentes daqueles percorridos por seus pais. Cada alma traz, desde o momento em que chegou a esse mundo, a sua vocação e, ao longo de sua existência, ela vai simplesmente reavivando aquilo que já sabe.


É por isso que filhos não seguem a profissão dos pais, filhos fracassam onde seus pais tiveram êxito ou alcançam êxito onde seus pais falharam. É por isso que filhos, nascidos em lares paupérrimos chegam a amealhar, durante suas vidas, verdadeiras fortunas. E também crianças nascidas em berço de ouro acabam por jogar suas fortunas fora, tornando-se, ao longo do tempo, desprovidos de quaisquer reservas financeiras.


É difícil levar pais a acreditarem que criam seus filhos para o mundo e que seu apego, se não é banido por sua livre consciência, é feito de forma compulsória, pelos ditames da vida. Também é difícil fazê-los crer que cada alma carrega, em si, a sua verdadeira busca pela felicidade e que não lhes cabe gerar infelicidade simplesmente para não renunciarem a seus egos e a seus apegos à personalidade.


É por isso que muitos lares são desfeitos: porque as pessoas se esquecem que o maior objetivo de um ser humano é ser feliz. E é por isso que, inteligentemente, o autor da novela Paraíso consegue retratar o verdadeiro sentido dualista, tanto de personagens criados por ele, como seres humanos aos quais, ao escrever, se inspirou. Isso é: a novela se passa em meio a um verdadeiro paraíso, onde a natureza se mostra pródiga e exuberante. Porém seus personagens ignoram toda essa fortuna ambiental, que receberam de herança, e ficam enredados em seus egos, criando um mundo à sua imagem e semelhança.


Um mundo, concebido, a partir dos elementos representados pelos personagens principais, que nesta forma de existência, desfrutam de um verdadeiro paraíso e também convivem com um verdadeiro purgatório, criado por mentes que buscam satisfazer as suas próprias ambições, buscar suas ascendências sobre os demais, alcançar a conquista do poder e da riqueza, da notoriedade pública e da esperança de que as pessoas venham a se tornar iguais ao universo imaginado em suas dimensões egocêntricas.

É, também, por isso que o autor traz, para a trama, situações da vida real, como a bajulação, o temor de as pessoas não se sentirem aceitas, pelas demais, caso resolvam assumir suas autênticas formas de vida. E também porque muitos têm medo, não de fracassar, mas de chegar ao êxito e se tornar aquilo que idealizaram para si mesmos.


Realidade e ficção representam apenas os dois lados de uma só moeda, que simboliza a realidade dualística, que habita a alma humana, estigmatizada por uma mãe, fraca por dentro e que demonstra, externamente, a rigidez de suas convicções, uma filha forte por dentro, que demonstra, externamente, a fragilidade e a condição de se amalgamar às imposições alheias, alimentada por suas formas de apego, ligadas a um bom moço, que, por sua vez, carrega o estigma do mal a ser deixado para trás em função de uma vida transcendente.



Em sua senda, os homens alimentam, através de suas personalidades, o sonho da eternidade. Mas muitos seres humanos confundem a evolução de seus estados de consciência com uma vida voltada a alcançar a santidade e a perfeição aqui mesmo, nesta forma de vida. Somos seres imperfeitos, em busca de evolução e não da santificação. Tal direcionamento requer não o polimento de nossa personalidade, mas o seu esvaziamento progressivo para que, em seu lugar, seja ocupada pela substância crística e nos leve ao mundo divino e ao final do caminho, que é a verdadeira liberação de nossos apegos e personificações que nos detém em nossa trajetória.


E tudo isso depende não do bem e do mal, mas da medida e do tempero que demos à nossa existência, que tem, assim como num cenário de novela, o paraíso, de um lado, e provação e a dor de outro. Uma caminhada semelhante à letra da música de Gilberto Passos Gil Moreira, que diz:


SE EU QUISER FALAR COM DEUS
Gilberto Gil
1980


Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

Um comentário:

  1. Nossa, tio! Quantas coisas passaram pela minha cabeça ao ler esse texto (post e música)! Fica complicado tecer qualquer comentário. Valeu para as reflexões do fim de semana, do mês...

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