segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O Espelho

Diz a lenda que um jovem rei formulou o propósito de conquistar todas as terras à sua volta e tornar o seu reinado único, senhor de todas as plagas, de todas as águas, de todo o ar que sopra prá lá e prá cá. Sonhou em ser um soberano entre todos os homens. E assim se dispôs a fazer, guerreando, conquistando, impondo-se, afastando tudo aquilo que lhe cruzava o caminho.

Anos depois, o Rei conseguiu realizar o seu intento. Não havia mais nada a ser conquistado. E, assim, finalmente se dispôs a desfrutar de suas conquistas. Mas o tempo foi passando ele acabou por entediar-se com a rotina e a sucessão de dias que se repetiam mais e mais. Já não sabia mais como lidar com aquela realidade, que lhe devorava o entusiasmo e a alegria de viver, embora fosse um soberano respeitado, admirado e cortejado.

Então resolveu instituir três prêmios para aquele pintor que conseguisse pintar o quadro mais bonito e significativo. O primeiro deles, é claro, seria a mão de sua filha, a princesa mais linda e mais cobiçada do Reino. O segundo era uma fortuna em jóias que trouxera de suas conquistas. E o terceiro era a doação de parte de suas terras àquele que viesse a lhe mostrar como devolver à sua alma a alegria de viver e a felicidade.

Vieram pintores dos mais variados lugares de seu extenso reino. E o Rei foi selecionando as obras e candidatos, até que sobraram apenas dois pintores, um representando o lado ocidental e o outro o lado oriental de seu reinado.

Para tanto, recomendou que cada um pintasse uma nova tela, da qual ele, pessoalmente, deveria acompanhar passo a passo a sua materialização. Colocou-os em um grande salão, mas cuidou de separar cada pintor, sua tela e suas tintas, em um recinto, dividindo o grande salão ao meio por uma cortina. Ambos não poderiam enxergar o que estava sendo produzido pelo seu concorrente. Mas o Rei e seus súdidos poderiam observá-los a trabalhar através de uma visão frontal.

O pintor que representava o lado ocidental de seu reino começou a trabalhar, colocando na tela inúmeras cores, iniciando um desenho a partir de uma apurada técnica. Enquanto isso, o artista, que representava a banda oriental de seu Reino, levara apenas um enorme espelho, acomodado entre cavaletes. O Rei não entendeu nada, mas deixou os pintores continuarem o seu trabalho. A noite já ia avançando e o pintor ocidental delineava um quadro muito lindo, com cores quentes que encantavam à medida que produzia cada pincelada.

Enquanto isso, o pintor oriental apenas pegara uma flanela e se colocara a polir o espelho. O Rei continuou a não entender nada, deu uma risadinha e determinou que os pintores fizessem seus trabalhos até o amanhecer do dia, quando seria escolhido o vencedor. E assim eles obedeceram e assim eles continuaram o seu trabalho. Enquanto o pintor ocidental projetava na tela a sua obra, o artista oriental apenas polia.

O Rei pensou consigo de como seria idiota e incompetente o pintor oriental, que, talvez, tivesse medo de pintar e de ser julgado por sua obra, assim como de quão inspirado estava o pintor ocidental.

A noite avançou e, já de madrugada, o Rei pediu aos candidatos que culminassem os últimos detalhes de suas “obras”, pois o amanhecer já se avizinhava. Um pouco antes do amanhecer, o Rei determinou que os artistas parassem seus trabalhos, pois o tempo já havia se esgotado. O pintor ocidental havia produzido um belo quadro. O pintor oriental se limitara a polir o espelho.

O Rei, em sua soberba, já se preparava para indicar o pintor ocidental como vencedor. Levantou-se e, para proclamar a sua escolha, deu uma última olhada no espelho e em tom de ironia determinou que os panos, que separavam os ambientes, fossem removidos e o salão fosse restaurado em toda a sua dimensão.

Diante dos primeiros raios de luz, o Rei começou o seu discurso. Mas nem bem havia iniciado o seu pronunciamento, verificou que um raio de luz penetrara naquele recinto, pela janela, e se projetara diretamente em cima do espelho, que, por sua vez, refletiu a luz da alvorada por sobre o quadro, iluminando-o e tornando suas cores esplendorosas, seus traços luminescentes e sua obra a verdadeira expressão daquele amanhecer.

E o Rei compreendeu que, na vida, conquistas externas só levam ao tédio. Mas conquistar a si mesmo, para impregnar-se de amor, paz e bem-aventurança lhe dá o sentido maior de sua existência. E que sua felicidade não vinha de o fato de ser cortejado, admirado e reverenciado, mas, sim, de fazer a sua alma brilhar como reflexo de toda a criação, bebendo, assim, direto da fonte que lhe dá a vida.

Compreendeu que, em lugar de ter olhado para fora, para buscar novos domínios e para subjugação das pessoas, deveria ter polido sua alma, para que seus súditos fossem inspirar-se à construção de uma sociedade humana mais justa, mais fraterna e absolutamente mais solidária.

O pintor oriental ganhou o prêmio, não por ter esfregado, à noite inteira, um pedaço de vidro, mas por ter conseguido, por seu exemplo, inspirar o mais temido e o mais bravo dos guerreiros, porém não imune a esconder a sua condição humana que luta, sofre, entendia-se, mas nem por isso mesmo deixa de estar subordinado à maior de todas as leis: para se chegar a transcender o nosso estado de consciência mundano temos que colocar a luz em nosso interior, iluminando as trevas e seguindo rumo à plenitude de nossa condição cósmica e universal. Chamem-nas de paraíso, nirvana ou quais outras designações que só a vida interior é capaz de identificar ou reconhecer, destituída de adjetivos, mas repleta de significados de um verbo muitas vezes esquecido, enquanto nos dispomos a conquistar o que não é verdadeiramente duradouro*.


* Texto produzido com base em contos que são disseminados de forma oral, pela tradição, cujo autor permanece desconhecido, até o momento de sua redação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário