domingo, 8 de novembro de 2009

Caminhos de Renúncia

Um cumprimento, entre membros que seguem caminhos espirituais inspirados na escola oriental, se baseia na inclinação da cabeça e de uma breve inflexão do corpo para frente, para simbolizar que a divindade que habita o corpo de um asceta saúda a divindade que habita o corpo de outro.

É um gesto que inspira respeito, consideração, reverência por outro ser humano. Mas, infelizmente, é uma prática utilizada por poucos, se compararmos à ascensão do individualismo na sociedade contemporânea. No Brasil, está ficando cada vez menos comum as pessoas dizerem: “com licença, por favor, obrigado”.

Inicialmente, ao prestar atenção no desaparecimento dessas simples práticas de relações interpessoais, cheguei a pensar tratar-se de uma “falta de educação”, mas, olhando a questão com maior atenção, passei a entender que o problema não está ligado à etiqueta social, mas a falta de consideração, de quem não adota essa conduta, por seus semelhantes. Estamos perdendo até mesmo o hábito de saudarmos as pessoas, com um simples “bom dia”ou “boa tarde”. Ou mesmo um “até logo”, como gesto de despedida.

O fenômeno das grandes cidades vêm produzindo relações cada vez mais impessoais e já é comum as pessoas residirem em prédios com muitos apartamentos, sem sequer conhecerem o seu vizinho de porta. Ao telefone vamos logo dispensando as formalidades para dizermos tão somente: Fulano, em lugar de dizermos: "Bom dia, por gentileza, poderia falar com o fulano? Ninguém tem a obrigação de chamar a quem desejamos falar. Seria um gesto de delicadeza agradecer a quem nos presta um favor.

Vivemos tempos atribulados onde cada vez mais colocamos cada vez menos o outro em nossas vidas. Em lugar disso, nossa baixa auto estima nos leva à necessidade de estarmos em evidência. Já temos pessoas demais, querendo ser mais. A humanidade precisa, com urgência, de pessoas que queiram ser menos. Sejam almas de renúncia.

Esta semana recebi um e-email contendo, anexado, uma mensagem cuja autoria é atribuída a Martha Medeiros, intitulada “Quindim na Porta”. O texto se referia ao livro de Paulo Hecker Filho, Fidelidades, em que o autor deixava bilhetes, livros e quindins na portaria do prédio onde morava o poeta Mario Quintana, acompanhados dos dizeres “Para estar ao lado sem pesar com a presença”.

A leitura dessa mensagem se fez ao tempo em que também vi inúmeros desabafos de pessoas de renome nacional, entre eles Paulo Coelho, a própria Martha Medeiros, Leonardo Boff e o mais recente deles, Arnaldo Jabour, reclamando de inúmeros textos publicados como sendo de sua autoria, porém escritos por pessoas não identificadas. Por isso não sei, ao certo, se a referida mensagem leva mesmo a assinatura de sua propalada autora, embora o seu teor tenha me levado a essa reflexão.

Quem não gosta de carinho? Dar atenção, num mundo onde é cada vez mais comum o individualismo e a solidão é um ato solidário. Mas é preciso, antes, haver a preocupação prévia de não importunar as pessoas, quando essas estejam indisponíveis para nós. Isso é procurar “estar ao lado sem pesar com a presença”. Certamente teríamos um mundo mais humano, mais solidário, sem adentrar na vida de outras pessoas sem sermos devidamente autorizados.

Em outras palavras, seria praticarmos pequenas renúncias que nos tornam seres um pouco mais completos e um pouco menos inconvenientes.

Isso implica em fazer compartilhar idéias e descobertas, compartilhar habilidades, alcançar o respeito mútuo, chegar a tomar decisões verdadeiramente de consenso. Praticar pequenos gestos pessoais de renúncia é apender a lidar com necessidades reais que possibilitem a superação de estados interiores.

Calar, quando se tem a inclinação de se falar, e prestar a atenção no outro, é reverter a tendência de as pessoas colocarem suas almas num altar e passarem a adorá-las, percorrendo um caminho interior de crescente complexidade. Calar-se, para compreender, é estabelecer uma nova identidade com sua alma, separando necessidades reais de necessidades superficiais, distinguindo-se meios e fins, separando tudo aquilo que retarda ou cria obstáculos ao desenvolvimento espiritual.

Atos de pequena renúncia levam, inicialmente, à reverência ao outro,mas, depois, nos levam a compreender que não se pode amar e reverenciar a Deus se desprezamos os homens, ainda que seja apenas um deles, pois calar e escutar é fazer com que a nossa divindade, que habita em nós, reverencie a divindade que está presente em outros seres humanos.

Um comentário:

  1. Fernando, excelente o teu artigo. É bem por aí.
    Me fez lembrar uma reunião de editores do jornal onde trabalhei até me aposentar em que o diretor de redação observou, com estranheza, que alguns repórteres passavam por ele sem ao menos cumprimentar. Os editores justificaram: "eles são tímidos". Tímidos não, retruquei. Mal educados e desrespeitosos. Aliás, uma das razões que me levaram a tomar a decisão de encerrar minha carreira jornalística foi a frieza, a falta de companheirismo, a deseducação e o desrespeito nas relações pessoais da redação. Cansei.
    Um abraço
    Clovis

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