segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Zezinho e a Santa

Sua estatura era baixa. Também era franzino, mesmo quando atingira a vida adulta, e de pouca fala. Mas era considerado um bom trabalhador. Quando pegava na enxada fazia a diferença, roçando o dia todo, até que surgissem os primeiros fios de ouro do luar do nordeste. Era um homem simples, saído do povo. Mas conhecia as primeiras letras, desenhava seu nome e, na maioria das vezes, pouco entendia dos textos apresentados por sua professora de primeiro grau.

Fervoroso cristão, aos domingos punha a sua melhor roupa e lá ia ele ajudar o Vigário da Cidade em seu ofício de sacristão. Nunca falhava, nunca se atrasava, atendendo prontamente as orientações do Padre e, por isso mesmo, era querido e apreciado pelos homens da Igreja. E pelo povo da cidade que comparecia aos cultos após os sinos dobrarem.

A Vila era pacata. Poucos veículos nas ruas, que, quando chovia, se tornavam um imenso lodaçal. Mas eram repletas de jegues e bicicletas que circulavam para lá e para cá. Principalmente junto à Praça Central, onde não poderia faltar estátua de político, geralmente de coronéis que dominavam a região, e muitas moças circulando à espera de um futuro garantido através de um bom partido. De preferência bem aquinhoado. Nos dois sentidos. Ah! Poderia ou deveria ser trabalhador, afável, gentil e não mulherengo.

Mas esse era o grande defeito de nosso homem, que, por seu porte esguio, mas só na aparência, recebera a alcunha de “Zezinho”. Nosso coroinha tinha sempre um destino incerto, itinerante, e seu lar era mesmo todo o nordeste. Porque sempre chegava à próxima cidade fugido e, sem dificuldades, ia logo se sentindo à vontade, conquistando, com seu carisma, a admiração das beatas, a confiança dos Padres e a complacência dos fiéis.

E, depois de se tornar conhecido e bem-quisto, deixava mostrar a sua maior fraqueza: servir de consolo para viúvas e mulheres de caixeiros viajantes. À noite costumava visitá-las, para dar-lhes o ombro amigo, preenchendo-lhes todos os espaços vazios. Todos. Aquecia suas camas, cobria-lhes de carícias e, pela manha, antes do sol nascer, tomava uma meia xícara de café preto e saia furtivamente, assim como entrara na condição de visita noturno.

Não demorava muito e era descoberto por alguém que padecia de insônia ou por algum entregador de leite ou de jornal. – “Olha lá o Zezinho saindo da casa de dona Zica. Aquele safado!” E logo-logo já não havia mais um denunciante, mas um grupo raivoso de homens que, indignados pelo consolo que dava, punha-o a correr da rua e também da cidade, com a promessa de que, se voltasse, poderia ficar sem o seu consolo para atender senhoras necessitadas.

Era assim que o tal Zezinho rodava por toda a região. Mudava-se quando a sua maior fraqueza era descoberta: as mulheres. E também foi assim que mal tinha chegado àquela cidade e já arrumava um jeito de fazer o seu carisma abrir caminho. Mas, desta vez, fora descoberto em sua primeira incursão. Tratou logo de correr e, embora tomado pela surpresa, constatara a pouca margem de distância em relação a seus desafetos.– La vai ele, pega ele, pega ele!, diziam os mais exaltados. Tarado. Tarado. Demônio. Pecador.

E, agora, para onde ir? Só havia um lugar para onde correr, esse já familiar e de seus antigos hábitos: a sacristia da Igreja. E foi para lá que correu. Correu tanto, que superou até mesmo o limite de sua constituição franzina, que Deus lhe dera.

Ufa! Entrara apressado no saguão santificado, mal dando tempo de encostar o dedo indicador na água benta da pia e, já cambaleando, fez a flexão de joelhos para demonstrar respeito ao Todo Poderoso, embora ele mesmo não tivesse a mesma reverência com seus semelhantes.

- “Onde ele está?, gritavam. Onde ele foi se esconder? Diziam vozes vindas do lado de fora do prédio.

Mais do que ligeiro, procurou um lugar para se esconder, caso alguma alma incauta resolvesse inspecionar aquele local sagrado. Não havia nada, senão enfiar-se sob o manto da imagem da Santa, de estatura próxima à sua, em tamanho “natural”. E alí ficou ofegante, encolhido. Assustado. Porque dessa vez ele exagerara na medida, pois o alvo era a mulher do Doutor Prefeito, que viajara em comício, em busca de sua reeleição.

Passados alguns instantes, tudo serenou e seu coração passou a bater com menor freqüência, enquanto ele dizia: “Puxa, foi por pouco. Muito Pouco”. Lá permaneceu até cambalear a cabeça e a ressonar, em conseqüência do cansaço que tomava conta de seu franzino corpo.

Mesmo assim, acostumado aos revezes, que suas traquinagens lhe traziam, resolveu olhar pela fresta do tecido e viu duas mulheres ajoelhadas, com terços na mão, fazendo suas novenas. Estava preso ali, porque se fizesse um só movimento, poderia ver a sua moral arrancada de seu corpo, após lhe dar toda aquela fama de galanteador e seu jeito de atender as súplicas de mulheres solitárias.

O jeito era controlar-se, para não deixar o seu corpo enrijecido pelo medo, enxugar o suor de sua testa e.... esperar.

Só não contava que o grupo caçador percorrera a Vila, nada encontrando, voltando para o átrio da Igreja. E todos, sem saber de seu paradeiro, entraram na Igreja para pedir ao Senhor que os auxiliassem em sua busca a encontrar aquele safado farçante.

A tudo, escondido junto à Santa, Zezinho assistia. E, agora? O que fazer? Enquanto as rezas seguiam, ele, novamente ficara fora de si, começando a falar alto e fino, enquanto o povo calava-se para ouvir aquela voz. Até que um fiel exclamou: “ Olha, a Santa fala!” Milagre. Milagre. E não demorou muito para que a Igreja lotasse. Todos queriam ouvir a Santa falar.

Zezinho gostou da experiência e, quanto mais se exaltava, mais soltava o verbo. Até que se surpreendeu dizendo frases inteiras que não eram de sua autoria. Como poderia isso estar acontecendo? Olhou para a imagem da Santa e ela permanecia ali, imóvel. Enquanto isso suas palavras fluíam através de sua boca, sem que ele quisesse ou pensasse naquilo que pronunciava.

Mais incrédulo do que os próprios fiéis, que ali estavam, compreendeu que o milagre estava acontecendo. Não era testemunha. O milagre estava dentro dele. Por ter vivido a experiência de Coroinha, entendeu que dentro de si morava o pecado e também a redenção. Mesmo sem rezar ou buscar elevar a sua fé, tudo fluía como uma luz que atravessava o seu corpo e se expandia ao tempo em que permanecia como o mais impuro dos fiéis, escondido por trás do manto que guardava a imagem de uma Santa.

Aos poucos, foram todos para suas casas. Os fiéis, contagiados por palavras que lhe falaram ao coração, lhes trouxeram a certeza de terem assistido algo maior do que eles mesmos, maior do que suas próprias vidas, ainda que sem saber que o fenômeno se processara através da impura alma de Zezinho. E, esse, por sua vez, ainda estupefato, aguardara um pouco mais para sair sorrateiramente de mais uma Igreja, de mais uma cidade.

Mas, dessa vez, tendo aumentado a sua experiência de vida, levando a certeza de que, com o Sagrado, não se brinca. E a dúvida de que talvez não fosse ele mesmo santo o suficiente para consolar jovens mulheres solitárias.

Foi quando lhe veio à cabeça o mesmo conselho, lhe repassado por vários padres por onde passava: "Meu filho, viva sob as leis de Deus. Obedeça os 10 mandamentos".

Apesar disso, ele sabia que era difícil ignorar os pecados da carne. Quem sabe mudar de vida, fazendo amizade somente com o cabo de sua enxada e passando a freqüentar mais vezes os salões e as sacristias de igrejas? Ou, como toda aquela experiência já ia se esvaecendo, para ficar tão somente em sua memória, quem sabe, talvez, pudesse ousar experimentar o vinho que o vigário guardava na sacristia, pois, afinal, neste mundo, ninguém é santo e ele, assim, poderia praticar um pecado menos alarmante, menos mortal, sem que viesse a bulir na moral e nos bons costumes das cidades por onde passava.

Dentro de si apenas a certeza de que, um dia, a Santa lhe falara, e que poderia unir, numa só coisa, destino e livre-arbítrio, embora, muitas vezes, as mudanças só ocorressem através de verdadeiros milagres, para lhe dar certeza dos caminhos a seguir. Apesar de nutrir uma paixão por viver perigosamente e transgredir limites, para dominar todas as situações de perigo que suas aventuras lhe proporcionavam. A adrenalina era necessária à sua vida.

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