sábado, 4 de abril de 2009

MÉDICOS DE FAMÍLIA

Você já imaginou se todo o proprietário de automóvel deste País resolvesse comparecer às oficinas mecânicas certificadas somente em caso de pane? Certamente os danos causados aos veículos, pelo acúmulo de problemas postergados, seriam de vulto, exigindo, de seus proprietários, dispendiosos recursos financeiros para efetuar seus tardios reparos. Os pátios das oficinas estariam lotados, haveria excesso de trabalho aos profissionais mecânicos disponíveis, incapazes de oferecer atendimento adequado a seus clientes procrastinadores.

Felizmente essa não é a atual realidade brasileira. No entanto, situação análoga, porém com resultados mais impactantes, acontece em relação ao sistema de saúde público deste País. Os hospitais estão lotados, há carência de leitos e de modernos equipamentos. Espera-se muito para uma consulta médica. Não há profissionais em número compatível para atender às demandas existentes. Entre o médico e o paciente há uma figura interveniente: o SUS ou os Planos de Saúde. A medicina é de emergência, especializada e voltada a tratar doenças manifestadas. Pode-se dizer que, em matéria de saúde pública, nenhuma das partes envolvidas está satisfeita.

Os gestores de hospitais evidenciam a ausência de recursos para investimentos. Os médicos apontam a precariedade das condições de trabalho e os pacientes recorrem às informações disponíveis na internet e à automedicação como formas erráticas de combate aos sintomas. No meio disso tudo nota-se a ausência de um personagem emblemático que foi perdendo espaço na vida nacional: o médico de família.

Os mais idosos ainda se lembram da tarefa, assumida por esses profissionais, de visitar regularmente as casas, examinar cada um dos membros da família, buscando prevenir doenças e promovendo a saúde de todos aqueles sob seus cuidados profissionais.

Os médicos conheciam não só as condições corpóreas de seus pacientes, mas também todo o seu processo de socialização, assim como fatores ambientais que marcavam a sua vida em família. Os diagnósticos não se baseavam estritamente em “como” e “porque” se manifestavam as doenças, mas também levavam em conta o local, data, fatores familiares, demográficos, sociais, psicológicos, epidemiológicos decorrentes, resultado de um convívio mais assíduo entre médico e paciente.

As relações eram norteadas pela amizade e pelo afeto, através de um convívio permanente, onde a visita médica à família estava contextualizada e inserida no ambiente onde a doença acontecia. Assim, não era preciso muito esforço para fazer o diagnostico: bastava olhar o paciente e referenciá-lo segundo a sua história pessoal.

A partir da década de 70 os médicos de família foram desaparecendo, gradativamente, mas suas práticas permitiram que a Medicina Preventiva evoluísse para chegar a abarcar o conceito de qualidade de vida saudável. Hoje ela está integrada por uma equipe multiprofissional especializada, contando com médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, professores de educação física entre outros. Esses profissionais atuam de forma integrada, trocando informações e proporcionando ao paciente um atendimento mais abrangente, oportuno e efetivo. Mas seus resultados, neste início de século, são ainda considerados acanhados ou incipientes.

O atual atendimento à família é feito em consultórios, a não ser que o paciente se encontre acamado, onde o profissional mantém a preocupação de estabelecer vínculos com seus pacientes antes mesmo que eles venham a adoecer, sendo ele o primeiro profissional a ser consultado pelo paciente.

Mais recentemente, esse profissional passou a ser chamado de médico de família e de comunidade e seu principal objetivo é atender pessoas de todas as idades, de ambos os gêneros, de forma continuada e integral, sendo ele amparado por uma equipe multiprofissional.

Pesquisas realizadas em nível mundial evidenciam que esse profissional é resolutivo em cerca de 80% a 90% das questões ligadas à assistência à saúde. Em nível mundial já há o consenso de que esse profissional resgata a antiga relação médico-paciente, que está sendo fragmentada pela especialização da medicina.

Inúmeras tentativas, desde a década de 70, vêm sendo tomadas no Brasil, no sentido de resgatar a Saúde da Família, muitas delas engendradas pelo setor público (SUS). Cita-se o caso da Caixa de Assistência aos Funcionários do Banco do Brasil (CASSI) como sendo a primeira empresa privada do País a implantar este modelo. Os resultados alcançados por essa experiência são satisfatórios, tanto na relação clínica, quanto na redução de custos e eficiência operacional do sistema. Mas há muito a ser feito.

Faltam médicos para atuarem em áreas carentes, assim como em cidades do interior. Pesquisa realizada pelo IOC - Instituto Oswaldo Cruz revela que apenas 5% dos estudantes de medicina pretendem atuar em cidades do interior, justamente onde a Saúde da Família resolve 70% dos problemas de saúde da população. Isso é: fica cada vez mais difícil especializar enfermeiros e médicos em saúde da família, com perfil profissional de competência técnico-humanística, capazes de atuar em consonância com os princípios e diretrizes da Estratégia de Saúde da Família

Na pesquisa realizada pelo IOC foram entrevistados 1004 estudantes do internato de 13 cursos de medicina em Goiás, no Tocantins, em Alagoas, no Paraná, no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. De acordo com o estudo, 63% dos alunos pretendem atuar como médico especialista depois de formados. Apenas 12% dos estudantes entrevistados consideram que a instituição de ensino em que estuda adota um modelo baseado na integralidade da atenção à saúde.

Quem fizer uma visita a sites de empresas de recrutamento e seleção ou até mesmo sites de sindicatos de classe, poderá comprovar os resultados revelados através do IOC de que a oferta de empregos, para médicos ligados ao PSF, vem aumentando em detrimento do número de candidatos.

Pode-se tomar o exemplo de Santa Catarina, um dos estados precursores da Saúde da Família, como Caçador, Rio do Sul, Barra do Guarita, Salto Veloso, Pomerode, cidades com cerca de três mil habitantes, assim como Tubarão, Blumenau e Joinville, centros polarizadores, que oferecem oportunidades que incluem salários de R$8.000,00 a R$11.000,00 por jornadas de 40 horas semanais. E muitos deles não exigindo experiência em Saúde da Família.

Esses salários talvez não sejam atraentes, mas certamente eles estão em padrão bem mais elevado do que percebe a maioria dos brasileiros assalariados.
Entre as atribuições inerentes aos postos abertos destacam-se “realizar assistência integral (promoção e proteção da saúde, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde) aos indivíduos e famílias em todas as fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência, idade adulta e terceira idade; realizar consultas clínicas e procedimentos na USF e quando indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos demais espaços comunitários (escolas, associações etc), além de realizar atividades de demanda espontânea e programada”.

Mais do que causa, esse fenômeno revela heranças de uma sociedade que estimula a cultura de especialidades, que vai, aos poucos, tomando conta do imaginário dos pacientes. Certa ou errada essa cultura da especialização ainda não conseguiu dar conta da enorme demanda retraída por serviços públicos de saúde.

Colocar, no fórum de discussão, a importância da medicina da família não constitui um retrocesso, às atuais tendências, nem uma tentativa de referendar, de forma oportunista, o Programa Saúde de Família, instaurado pelo Governo Federal. Nem mesmo iniciativas dessa natureza constituem a solução para todos os problemas de saúde do País.

Mas traz à tona a assertiva de que, tão importante quanto conhecer a doença, é conhecer quem está doente. É preciso dar ao antigo médico de família uma nova roupagem, que incorpore modernos conhecimentos técnicos e científicos, mas também despertar-lhe a consciência humanística. Não apenas formular diagnósticos e indicar tratamentos, mas, sim, dirimir dúvidas e temores dos pacientes, assistindo-lhes e ajudando-os a superar problemas, à medida que a assistência médica se faça necessário.

Amplamente difundida no mundo inteiro, no Brasil, a medicina de família e de comunidade ainda luta por sua consolidação, podendo ser uma solução para os entraves que impedem o País possuir uma saúde pública eficiente, preventiva e voltada à qualidade de vida daqueles que hoje lotam hospitais e consultórios em busca de melhores dias.

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