domingo, 8 de agosto de 2010

Dia dos pais

Há cerca de 20 anos, uma então colega de trabalho me perguntou: quantos filhos você tem? Eu lhe respondi prontamente: nenhum. E ela, misturando um ar de indignação, com a minha resposta, e surpresa, me replicou: ué, mas eu vi você, num shopping, acompanhado de crianças. Como você me vem agora responder que não tem filhos?

Ao que lhe respondi: eu não tenho filhos, eles me têm. Porque agora, que estão crescidos, eles me dizem que roupa devo usar, me apontam meus erros, dizem o que devo fazer, expressam suas opiniões enfáticas sobre mim, com ar de quem já adquiriu suas experiências na passagem por esta existência.

E assim tem acontecido, ao longo dos anos. Eu os acolho. Eles me emprestam suas experiências de vida. E, hoje, enquanto eles reverenciam o pai que tem, eu me volto a pensar em todos aqueles que dividem comigo, neste momento, essa experiência maravilhosa de ser pai.

Apesar de minha idade, assim como experiências já passadas há muito, verifico e reconheço o quanto é difícil passar por esta experiência ao término de um século e o começo de outro, quando tudo é visto, revisto e examinado.

Os paradigmas mudam, o papel atribuído passa por questionamentos, as relações afetivas se transformam, a visão de quem é filho, hoje, muda a todo o instante, enquanto ficamos aferrados às velhas e conservadoras posições. Sempre foi assim. O novo surge para desbancar o velho, mas o velho também incorpora valores trazidos por esse mesmo novo.

Penso na experiência paterna. Se, no Brasil, as universidades injetam nas mentes acadêmicas um monte de informações que não serão utilizadas pelos seus discentes, e não há preocupação curricular de preparar seus alunos para a vida, mas, sim, para a tecnocracia e a tecnoburocracia, também não há um curriculum que inspire os indivíduos a chegarem à maturidade de passarem pela experiência de se tornarem pais.

Assim, a experiência de passar pela paternidade é mais um ato de experimentação, tentativa e erro, aplicação das experiências herdadas de seus pais, aplicação dos velhos e conservados paradigmas, dentro de uma sociedade que hoje quer uma nova ordem e uma lógica que agregue famílias e constitua a célula da sociedade.

Viver a experiência de ser pai é única e intransferível. Todo o pós adolescente têm uma idéia de como procederá, quando chegar a hora de passar de filho à pai. Mas, ao colocar em prática seus arquétipos, descobre que na prática toda a teoria é outra.

Ainda era uma criança, quando me colocaram às mãos um bebe, que possuía uma cor avermelhada, de tanto chorar e se esganiçar. Minha filha, quando pequena, se mostrou, desde cedo, birrenta, chorona e cheia de caprichos.

Berrava todas as noites e, pela manhã, nos primeiros raios de sol, muitas vezes encobertos pela neblina de um rigoroso inverno, ressonava enquanto seu pai tinha de levantar e seguir para o trabalho, com os olhos esbugalhados, olheiras na face e uma indisfarçável expressão de noite mal dormida.

E ainda, ao sair, ter de ouvir sua esposa dizer: “olha que amor, agora ela dorme como um anjo”. E foi assim que aprendi que um dos segredos da paternidade é uma grande e assumida disposição de renunciar.

Nem bem me preparava para trabalhar a minha personalidade imatura, e já tinha que pensar, pela assumida experiência de paternidade, em renunciar e conceder. Acho que esse é o grande segredo de uma bem exitosa passagem por essa função, que exige esquecimento de si mesmo e sensibilidade aos desígnios de criar e crear um ser verdadeiramente em formação, desde seu estágio semente até chegar à plenitude de sua existência.

Se fui bem sucedido? Sinceramente não sei. Mas certamente quando tiver deixado essa vida ensejarei meios e condições de ser avaliado e até mesmo receber uma nota por tudo aquilo que fui e também por tudo aquilo que não fui, enquanto era tratado pelo simples apelido de: “pai”.

Enquanto isso, volto-me ao passado e examino e faço cortes em minhas experiências. Em sua maioria, ao olhar a realidade de ontem, com os olhos de hoje, eu certamente as jogaria fora e, se pudesse passar pelas experiências novamente, as faria diferente.

Mas, entre as experiências que eu conservaria, está, sem dúvidas, uma passagem em que me lembro ter ido visitar o meu pai. Quando eu já tinha criado meus filhos e quando ele, já velho e vivendo sozinho, em outro estado, me recebeu como visita por dois dias. O via muito pouco, e, a cada vez, por períodos nunca superiores a uma semana, contra dois ou três anos de ausência.

Então, dessa vez, ele, pleno de saudades e farto de sua solidão, perguntou-me: “e aí, então, o que tens de novo a me contar'? E eu lhe respondi, secamente: “nada”. Sua expressão foi murchando rapidamente, e de uma condição facial exitosa por minha presença, foi, rapidamente, trocada por um ar de frustração e de desânimo. Ainda hoje penso o que deve ter se passado por sua mente: “puxa vida, eu esperei quase dois anos para vê-lo, ele me faz uma visita de dois dias, para depois seguir viagem que o levará a outro destino, fico sozinho todo o tempo e ele não quer me contar nada de sua vida”.

Esse aparente desgosto se tornou perene, pois nunca mais tocamos nesse assunto. Mas o que ele nunca soube foram as razões que me levaram a assumir aquela afirmativa, tão desestimulante ao seu modo de enxergar as coisas. Pois já acreditava que o essencial não pode ser expressado em palavras, mas sim em sentimentos. Não lhe havia visitado para falar de minhas emoções, mas, sim, para expressá-las, para lhe falar através de meu coração, que não pode ser dissecado através da mente, mas com sentimentos de gratidão e afeto.

Se ele não foi capaz, ainda, de entender o meu gesto, o deixo plasmado aqui, nessas linhas, para que elas cheguem até a eternidade e ele as receba agora, com os votos, nessa data, de todo o meu tributo à sua figura paterna, que me ajudou a me orientar por essa vida. Obrigado, meu pai, pois eu te amo.

Como diz um Mestre Ascencionado, que também é pai de muitos filhos: não agradeças a quem te ama, mas procures retribui-lo com o mesmo amor e com a mesma intensidade.

Afinal, a paternidade é um ato de amor e está associada à doação e à entrega.

Por isso, mesmo que eu seja, neste dia, homenageado não posso deixar de pensar em meus colegas pais. Fico pensando naqueles pais que hoje estão nas cadeias, nos leitos dos hospitais, nos manicômios, nas sarjetas, nos abrigos, nos asilos ou simplesmente desapareceram sem deixar pistas, como aqueles que ocuparam os porões da ditadura ou das trincheiras de uma guerra.

Daqueles que se encontravam em hora e lugar errados, como em Hirochima & Nagasaki, como no atentado de 11 de setembro, como nos terremotos do Chile ou do Haiti, como os tsunamis da Tailândia e do Japão (Hokaido), da Nicarágua, da Ilha das Flores (Indonésia), do Peru, da Nova Guiné ou do Oceano Índigo.

Lembro-me, neste dia de hoje, daqueles pais que viram seus filhos morrerem em seus braços, como em Serra Leoa ou Somália ou vitimas do caótico trânsito, como é o caso de Raul Mascarenhas, que teve que enterrar, recentemente, seu filho Rafael Mascarenhas, vítima de um atropelamento durante a madrugada de terça, 20, enquanto andava de skate com alguns amigos no Túnel Acústico, na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro.

Quantos pais anônimos viram seus filhos atropelados, prensados em ferragens ou arrastados pelas ruas, vitimas de assaltos ou balas perdidas. Quantos pais se esqueceram da missão divina que receberam, e acabaram por tirar-lhes a vida em lugar de amar, respeitar e incentivar um ser que é fruto de seus atos de amor ou de simples prazer imediatista, desprovido de responsabilidades e conseqüências.

A sociedade tem, historicamente, reservado aos pais os papéis de provedor, de esteio, de mantenedor, de poder paternal, dele derivando a conotação de austeridade, disciplina, ordem, respeito e muitas vezes intimidação, arquétipos que vem sendo mudados, gradativamente, derivados pelo divórcio, pela separação, por lares desconstituídos, mas, também, pelo ensejo de assumir o amor e a compaixão de levar uma semente a ser regada, cuidada para que um dia assuma a sua condição plena de existência.

Se pudesse, eu sairia, hoje, de casa para abraçar a todos os meus amigos, que são pais, a todos os que são mais filhos do que pais, a todos os pais que são mais filhos, a todos os que, ao passarem por essa experiência, conseguiram adentrar por uma das principais leis espirituais que regem a esta vida, a lei da renúncia, e, também, a certeza que, embora pais, somos todos filhos de um ato de criação. E que, ao darmos os parabéns aos pais humanos, quase nunca nos lembramos de um Pai, o maior de todos os pais: Deus, que é quem nos provêm não do que queremos, mas do que é necessário para nosso crescimento.

Talvez seja essa uma outra lição a ser incorporada por aqueles que assumem essa experiência. A de que um filho não é parte de nós, não pertence à nossa personalidade e não é a nossa imagem e nossa semelhança. Todo ato, criado através de nós, à medida que toma forma, vai, aos poucos, se distanciando, por suas experiências, construindo uma vida independente e soberana. Uma realidade às vezes difícil de ser assumida. Quando mudamos nossa percepção ortodoxa adquirimos mais condições de compreender que essa vida, que ajudamos a criar, somente se liga a nós pelo verbo, pela afetividade, em decorrência da maneira como as tratamos, em seus processos de formação.

Foi isso que aprendi e que hoje, nessa condição, me torna um ser completo e abençoado. Meus filhos, eu os amo, acima de quaisquer circunstâncias, e, se hoje me fosse dada novamente a opção de decidir, eu a tomaria novamente e repetiria tudo de novo, por todas as alegrias que resultaram de noites mal dormidas, de testas enrugadas e de decisões a serem tomadas, sempre envolvendo mais do que minha própria vida. Afinal, como dizia o poeta Fernando Pessoa: “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.

A você que me lê, neste momento, se já tiver vivendo ou passado por essa experiência, desejo-te um FELIZ DIA DOS PAIS.

Um comentário:

  1. Adorei,Fernando. Primeiro comentário verdadeiramente original sobre "Dia dos Pais".
    Gostaria de conhecê-lo melhor. Sou bibliotecária do Ministério Público do Trabalho em Fortaleza. Vamos trocar idéias?

    ANA MARIA
    anamariacamelo@bol.com.br

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