quarta-feira, 6 de maio de 2015

Kandinski para todos os olhares...

Foto Fernando Sanchotene


Wassily Kandinsky tem nacionalidade russa e é considerado um dos mais renomados mestres da pintura moderna, pioneiro e fundador do abstracionismo que inspirou a arte do século XX. Odiado por muitos e reverenciados por outros, deixa um extenso legado, sem considerar uma parte marcante de seu acervo, perdido em tempos de guerra. Ao iniciar a minha jornada por Belo Horizonte, no período de 25 a 29 de abril de 2015, tentei entender melhor esse artista, pois inúmeras vezes havia me perguntado: o que o autor quis dizer com "este quadro" ? O que estaria pensando e vivendo no momento em que pintou cada uma de suas obras?

Movido por uma infinidade de perguntas, busquei, desde o início, antes de olhar para os quadros em exposição, conhecer um pouco melhor quem foi e quem esteve atrás de tamanho acervo, uma vez que a exposição que iniciara meus primeiros contatos trazia um lado desconhecido do autor para seu grande público. O resultado foi aprofundar-me nos aspectos e valores existenciais de um homem que, em seus 78 anos de existência (1866-1944, fez muito mais do que pintar quadros, contribuindo para uma mudança do pensamento de seus contemporâneos e uma nova forma de encarar a arte.

À medida que fui penetrando pelos cômodos do prédio onde funcionara, antes, a Secretaria de Segurança Púbica de Minas, caprichosamente restaurada e conservada, fui encontrando respostas às perguntas previamente formuladas. 

Ali estava pujante as marcas existenciais do autor, através de uma iniciativa do Ministério da Cultura e do Banco do Brasil, na exposição Kandinsky: tudo começa num ponto, título que, por si só, já abre o diálogo entre o autor e seus admiradores.

Procurei conhecer melhor o modo como Kandinsky foi se reinventando até a passagem para a abstração, quando passou a acreditar que a figuração deixara de ser a única via possível de representar o ser humano, e, rompendo com o status quo existente, abriu um universo sem fronteiras, levado pela ânsia de querer saber sempre mais e sua inesgotável criatividade e inventividade. 

O primeiro ressinto visitado, logo na entrada, no andar térreo, já me permitiu verificar o quanto o autor diversificou o seu olhar. Uma série de pequenas caixas de madeira herméticas, eram o convite para o visitante enfiar suas mãos e braços por tubos plásticos, nas laterais, para explorar o seu conteúdo. Através do tato, o visitante ia procurando identificar os objetos escondidos naqueles recipientes. Foi uma experiência sensorial que divergia de traços coloridos, lançados quase ao acaso, de seus quadros. Nem bem havia terminado de elaborar minhas digressões, percebi o recepcionista/instrutor se aproximar, em busca de interlocução, pois observara que a maioria dos visitantes percorria aquele setor da Exposição sem fazer perguntas nem dialogar com ele. 

Chegou a meu lado e. percebendo receptividade, começou a falar sobre o autor, meio que avinhando qual seria o meu interesse. Falou no quanto Kandinsky se esforço para quebrar com o seu pensamento, graças, principalmente, à sua fase de convívio com os xamãs, na Mongólia, como pilar da inquebrantável disposição de quebrar paradigmas. 

- "Interessante", pensei com meus botões. O que parecia, ao início, um interesse protocolar, de minha parte, se tornou, em fração de segundos, uma avidez por adentrar naquele mundo. Ele continuou falando sobre as longas temporadas em convívio do autor com povos mongóis, que habitavam o norte da Rússia, onde conheceu, trabalhou e aprendeu com os xamãs a descobrir novas percepções da realidade. A essa altura já estávamos ligados pelos mesmos interesses. 

Não queria outra coisa, senão saber o que o xamanismo teria a ver com o surgimento do Abstracionismo de seu criador. Minhas buscas agora tinham rumo. Já no primeiro andar, verifiquei que a exposição se estendia por várias salas. Os trabalhos expostos intercalavam-se com fotos e pinturas de autores contemporâneos de Kandinsk, assim como projeções audiovisuais explicavam aspectos vividos por esse artista. Já na segunda sala um filme retratava a vida de Kandinsky. A duração de 35 minutos, aproximadamente, começou a desvendar e explicar para mim como e porque nasceu o abstracionismo de Kandinsky.

Pela narrativa, descobri que seus pais, logo em seus primeiros anos de vida, se separaram e ele foi morar com o pai, que o levava por inúmeras viagens que fazia. Já na adolescência, por sugestão ou até mesmo imposição do pai, resolveu estudar Direito, se especializando em Jurisprudência. O pai lhe incultara a idéia de que a carreira, a ser escolhida, deveria lhe trazer amplo retorno financeiro, ainda mais em meio a uma economia russa que vivia de crise em crise. 

Já profissional renomado e interessado em economia, por decisões pragmáticas, resolveu, por volta de 1889, empreender uma viagem à região de Vologda, ao Norte da Rússia, onde buscava conhecer melhor os costumes e a situação econômica do povo dessa região, que tinha ascendência russa e finlandesa. Através de artigos científicos, se interessou em conhecer um povo, especialmente: Zyriane.

Em contato com os Kómi e com a terra nórdica, desenvolveu o amor por aquela gente primitiva, sua vida e sua arte. Fruto desse convívio aprofundou-se em rituais e crenças, principalmente após ler a obra épica filandesa "kalevala". Os Kómi eram idólatras e sacrificavam animais como oferendas a seus deuses. Mas a sabedoria existencial, fruto de um legado transmitido de geração a geração, foi lhe impregnando de novos sentidos e significados. 

As viagens àquela região demoravam muitos dias, se iniciavam em veículos confortáveis, passavam por lombos de burros e acabavam em longos trechos a pé, muitas vezes enfrentando condições climáticas e sítios naturais adversos. Normalmente, encontrava muitos pintores, em seus deslocamentos, que estavam estasiados diante de uma paisagem exuberante, fonte de inspiração à criação de suas obras. Mas, àquela altura, Kandinsky se inclinara a olhar a vida humana, formando a base para a sua arte, em momentos subsequentes. Foi quando, em seus escritos, passou a utilizar, com frequência, a palavra "alma". E, com ela, a dimensão de vida interior.

Como seus recursos, em viagens, eram rudimentares, começou a fazer pequenos croquis, para registrar impressões colhidas ao longo dos caminhos percorridos. Versátil, passou a ser conhecido por seus textos, uma forma de fazer difundir tudo o que vira e buscar transferir, em seu habitat, toda a riqueza popular ao qual aprendeu a respeitar e amar.

Tempos agitados, quando começou a se interessar pela pintura. Começou a pintar utilizando cores vibrantes e seus quadros eram intensos, sempre enaltecendo a luz e suas nuances em ambientes coloridos. Mas um dos seus professores de pintura lhe obrigou  a pintar utilizando apenas o preto e o branco. Aceitando a imposição, porém seguiu em frente carregando insatisfações e inquietudes.



Indumentária Xamã em exposição 

Foto Fernando Sanchotene

Unindo-se aos pensadores contemporâneos, na passagem para o século XX, acompanhou e participou de discussões que buscavam transferir o foco do naturalismo para uma forma emocional, acompanhada pelo simbolismo e pelas evidência das tradições do folclore nacional.

A essa altura, Kandinsky, em seus textos, já falava abertamente, em suas obras escritas, da influência da arte popular e mítica dos povos do norte da Russia. Além, é claro, de retratar o folclore, a música e as histórias populares russas que sua tia lhe contava. Tudo isso eclode a partir de sua obra “Degraus”, um marco delineador em sua existência.

Kandinsky casou-se novamente, adquirindo uma nova residência, inspirando-se nos objetos que adornavam o seu interior. A partir de seus croquis, elaborados em viagem, deu continuidade à sua inclinação de reproduzir formas, objetos, movimentos de luz e sombra. E, quase que naturalmente, mostrou-se insatisfeito com os resultados alcançados. Então começou a buscar uma forma de representar a sua visão interior, caminhando mais e mais para formas abstratas. Já estava presente, em seu interior, a crença de que o uso das tintas (cores) e suas formas poderiam influenciar a alma humana.

Mas ainda ficara insatisfeito, pois ao descobrir que uma parte do público não entendera o significado de suas buscas e simplesmente passaram a cuspir em suas telas. Precisava encontrar uma maneira de motivar as pessoas a aperfeiçoar o seu olhar em relação a tudo o que queria transmitir. 

E, assim, começou a procurar uma forma de introduzir o olhar do espectador no quadro, para que ele girasse e se diluísse na obra, aflorando emoções próximas ao que estava sentindo, ao usar as cores como ícones da condição humana. 

Em outras palavras, Kandinski dera-se conta de que nunca um espectador deveria olhar o quadro a partir de uma visão feita pelo lado de fora, à distância, mas, sim, de dentro para fora. Fazer um movimento entre os traços de suas obras, vivendo dentro da própria criação. E, com isso, tinha certeza de que uma nova linguagem, mais interativa, entre autor e seu público estaria definindo os caminhos da arte nesse início de século XX.

Ora, ao receber tais informações, tudo ganhou um novo sentido para mim. Se eu quisesse entender tudo o que via, não poderia mais olhar de fora e, sim, "de dentro". Ao mudar o meu olhar Kandinski também me inspirou a mudar a minha atitude, dentro do olhar em direção à arte.

E também compreendi que esse olhar mundano, rotineiro, não é dirigido somente à arte, mas a tudo o que vivemos e experimentamos. Sempre olhamos o que está à nossa volta de fora, à distância. Viver desde dentro é estimular uma coisa que chamamos de "empatia". É passar a ver a vida como um constante compartilhar. Tanto os físicos quanto os espiritualistas já dizem isso há séculos: tudo está ligado a tudo. Tudo, simplesmente, é! A física quântica veio para reafirmar que sujeito e objeto são uma coisa só e um influi na forma de olhar do outro. 


Os textos, bem distribuídos ao longo da exposição, servem de referencial
para quem deseja conhecer melhor as obras do artista. 
Foto Fernando Sanchotene 


A esta altura a exposição ganhava, para mim, um novo sentido, e, com ele, o olhar para o próprio universo que habito. Minha passagem por Belo Horizonte já estava, a partir daquele momento, amplamente compensada. Os textos tiveram um papel fundamental nessa compreensão, guiando o expectador em direção a uma nova compreensão do mundo vivido por Kandinsky, assim como ele próprio o fez, em suas obras escritas, paralelas a um mundo de telas, cores e símbolos. 

Tomemos um exemplo:

O autor mantinha predileção por São Jorge que, segundo os textos de suporte à exposição, descreviam o santo: "São Jorge, um dos santos bizantinos mais venerados, foi canonizado na Rússia Antiga e seu dia de festa instituído na época de Yaroslav, o Sábio, que foi batizado com o nome do mártir em sua honra. A partir desse dia passou a se tornar o santo padroeiro dos príncipes russos, e sua imagem adquiriu grande papel na vida religiosa e política do país. 

O Santo era venerado pelo povo também como guerreiro valente ("Legory, o valente") defensor das terras russas, protetor dos lavradores e pastores. A imagem heráldica do vencedor do dragão tinha o sentido simbólico muito mais amplo do que a ilustração da vida de São Jorge. Ela significa a vitória do bem e da fé sobre as forças do mal.



Quadro Milagre de São Jorge e o Dragão
Segunda metade do século XVI, Valogda
têmpera sobre madeira 
Museu Estatal Russo. 

Agora vejamos como Kandinsky retratou o santo de sua predileção. Diz o texto: " Wassily Kandinsky, admirador dos ícones e da cultura popular, faz uma versão muito própria da imagem de São Jorge: uma obra predominantemente abstrata, na qual apenas o título remete a uma interpretação concreta. No caos das manchas de cores expressivas que preenchem a tela, ainda se distinguem contornos de rochas e as figuras da princesa e do cavaleiro derrotando o dragão. Esses detalhes reconhecíveis, fazendo surgir associações, enriquecem as imagens e reforçam seu sentido múltiplo. Mas como os sons da música, livres de grilhões, da forma material, as combinações de cores e contrastes das manchas de cor nesse quadro transmitem os estados de ânimo e de espírito de seu criador". 

Vejamos o quadro:


Foto Fernando Sanchotene


Há um outro aspecto a ser enaltecido. A música também desempenhou um papel fundamental na vida de Kandinsky, já em fase mais recente, quando tudo estava em ebulição, no mundo das artes, ao tempo em que a vanguarda musical russa trabalhava a natureza imaterial da música. Kandinsky simplesmente mostrou-se fascinado, quando ouvira, pela primeira vez, uma ópera de Wagner, entendendo que poderia, com sua obra, penetrar mais do que os limites da própria música.

Para unir a todos esses aspectos, cheguei ao último baluarte da exposição, que se encontrava no andar térreo, no pátio daquele prédio histórico. Representantes de uma empresa de 3D condensaram todo o trabalho de Kankinski em um programa digital, com duração aproximada de 4 m 30 s. Os interessados, após entrar em uma extensa fila, recebiam óculos em 3D e fones de ouvido para, mediante a utilização de uma tecnologia apropriada, viajar pelo quadro mais famoso do pintor, como se estivesse dentro da obra. 

Movimentos com a cabeça animavam, também, as imagens e, quando o espectador desejasse se fixar num ponto, fazia cessar o movimento ao mesmo tempo que cores vibrantes, acompanhadas por músicas diletas do autor, e por narradores, falavam sobre o significado da cor escolhia pelo autor, seu significado psicológico e representação na parte focada.  Para o espectador a síntese do que vira nos espaços anteriores de exposição e, também, tudo o que vivera em sua emoção e sensibilidade, movidos por uma tecnologia 3D. 

Muito poderia ser abordado, no presente artigo, mas, certamente, além de torná-lo exaustivo, não abarcaria toda a vida e toda a obra de Kandinsky. Para os interessados em conhecer aspectos complementares à exposição, convido visitar o site do Centro Cultural do Banco do Brasil, onde encontrarão catálogos, fotos, ilustrações e descrições e narrativas da vida, obra e resultados alcançados por um dos artistas mais completos e famosos do século passado. 

As ilustrações, apresentadas aqui, foram feitas a partir de fotografias captadas através de equipamento rudimentar, para registrar os  quadros existentes. Servem apenas para provocações ao espectador, embora a sua qualidade esteja comprometida, pois, no local, seus organizadores liberaram os registros fotográficos, cujos resultados são altamente questionáveis, se reproduzidos de forma rudimentar, como acabou acontecendo, sem regular velocidade e abertura de obturadores para colher mais fielmente cores, luzes e sombras. 





Foto Fernando Sanchotene

A programação será mantida até do dia 22 de junho do corrente ano, no Centro Cultural do Banco do Brasil, de quarta a segunda, das 9 às 21 horas, na Praça da Liberdade, 450 (bb.com.br/cultura).

A exposição aconteceu, antes, no Rio de Janeiro e em Brasília. Depois de Belo Horizonte será a vez de São Paulo e, dali, voltará para seu lugar de origem. O acervo tem como base a coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, além de obras de oito museus do interior da Rússia e de coleções particulares.

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